Como todos sabem...

Licença Creative Commons
Todo o conteúdo escrito deste site é obra de Igor Lins e é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Dama da Espada, parte 4

Por fim, chega o silêncio no pequeno pátio que até segundos atrás estava cheio de gritos de dor e ossos se partindo, berros de comando e desespero, lâmina contra carne, madeira contra osso, mas após um turbilhão de sons violentos, o silêncio chega. Um castigado corpo se encontra encostado contra uma porta de uma humilde casa, uma pavorosa mancha de sangue enquadra um rasgo na sessão superior da porta, logo acima do corpo. O corpo é de uma jovem, seu rosto deformado por escoriações, seu corpo trespassado por meia dúzia de rasgos, em suas mãos inertes, uma maciça espada de madeira afogada em sangue. Ao seu redor, quatro corpos trajando roupas e armaduras que os distinguem como soldados, alguns ainda seguram suas lanças e espadas, num esforço fútil de seus membros em manter os corpos imóveis dos guerreiros armados, outros jazem de palmas abertas, como se tentassem se arrastar para longe da luta. 



Quebrando o silêncio com um esforçado barulho de arrasto, a porta semidestruída da humilde casa se abre, fazendo o corpo ferido da jovem cair para dentro.

Mayuki nem sequer sabia o porquê pessoas estavam se matando logo no pátio ao lado da casa de sua mãe, sabia que haveria uma execução de uma fugitiva no pátio principal. Mas se era uma execução, porque haveria luta? E se mesmo que ocorressem lutas em execuções, afinal samurais são sempre bem imprevisíveis, porque justo no pátio de sua mãe, que fica a dois quilômetros do pátio do templo?

Mayuki morava próximo ao templo, e estava feliz que o jovem comandante Kôra tivesse escolhido se instalar na casa do magistrado, que fica perto das ruínas do antigo Palácio Higoi, pois isso deixava os samurais bem longe dela. 

Mas então, quando eles começaram a dizer que iriam executar um fugitivo no pátio do templo, ela se mudou temporariamente para a casa de sua mãe com seus filhos e seu marido, pois ela não queria que seus filhos assistissem uma execução - e também temia que os samurais não estivessem satisfeitos com apenas uma execução e buscassem alguns camponeses para saciar sua sede de sangue.
Seu marido não está lá. Aquele tonto foi correndo assistir a execução e a deixou sozinha junto com sua mãe e filhos, de repente guardas aparecem e dizem que todos devem permanecer em suas casas, com aqueles apitos e lanternas, logo depois disso uma GUERRA acontece no pátio ao lado da casa de seus pais, onde crianças costumam brincar de Kemari.

Quando era mais moça, Mayuki era considerada uma princesa de tão bonita, muitos homens queriam casar com ela, mas por conta de um amor tolo, acabou casando com um patife que só pensa em gastar seus ganhos com jogo. Hoje Mayuki está toda acabada, seus cabelos outrora negros e vistosos estão quebrados aqui e ali e com fios brancos, que ela esconde estes defeitos com o cabelo mais elaborado que sua vida de trabalho permite, ela ainda encontra tempo para raspar suas sobrancelhas, mas maquiagem nem pensar, já que o sol e a água do trabalho em casa e na cozinha acabam por borrar ela toda, os kimonos coloridos deram lugar a roupas mais práticas e apagadas. Tudo isso porque ela precisa trabalhar em dobro, já que tudo que seu marido ganha vai para o jogo.

Sua mãe mandou que ela fosse vigiar a porta, para avisar a todos se aparecesse perigo. Ela vigiar? Porque justo ela?

- Você quer que eu vá vigiar no lugar? Quer que eu me arraste até a porta e enfie minha velha carcaça em perigo? Ou você quer que seu pai volte dos mortos para fazer isso? Ou quer que seus filhos façam isso e confundam o barulho com uma brincadeira? Ah! já sei, mande seu marido, aquele idiota. Espere um momento, ele não está aqui! Minha memória vive me pregando peças!

Foi o que sua mãe lhe respondeu, e, apesar do sarcasmo ácido, ela tem toda a razão, sua mãe, Obayuki, é muito velhinha e as pernas se tornaram finas como gravetos, ela mal consegue andar mais, nem com ajuda de sua velha bengala. Seu pai morreu a meia década atrás, parecia ter mais vigor que sua mãe e, mesmo velho continuava trabalhando como tecelão. Um belo dia, ele lá estava reparando uma rede de pesca quando de repente vira os olhos e cai morto, tamanha a pressa que os deuses queriam que ele se fosse. 

Seus filhos são pequenininhos, a menina mais velha tem 10 anos, o mais novo tem 8, embora eles já tenham toda a esperteza que essas crianças de hoje em dia tem, ainda são crianças e não podem se arriscar vigiando o que parece ser uma invasão inimiga digna das histórias que os mais velhos da cidade contam que já aconteceu. Já seu marido, maldito Konichi, porque ela foi se casar com ele, e o pior que é só ele vir com aquele sorriso bobalhão para ela o perdoar, que raiva.

Alguém tromba contra a porta fazendo o coração de Mayuki ir para a boca. Estou muito velha para isso, ela pensa. Mais golpes de espada e mais gritos. Ela espia pelo buraco que fizeram na porta (o magistrado vai ter que pagar!) e vê que o que parecia uma guerra eram só três guerreiros completamente armados e armadurados contra uma mulher em farrapos e um porrete! Como uma guerra pode sair disso?
Mayuki continua olhando, a garota está de costas para a casa de sua mãe, um homem usando um jingasa de ferro duas vezes o tamanho dela parece estar se preparando para executá-la, com sua espada alta apontada para o céu. A garota tem apenas aquele porrete enfiado em seu obi, para Maiuki nunca que ela conseguirá tirar aquele porrete da cintura antes do grande samurai a partir em dois. Para sua surpresa, a mulher saca aquele porrete com tanta velocidade que Mayuki só nota que ela o fez ao ouvir o eco do golpe do porrete contra o rosto do samurai antes que ele pudesse completar seu ataque! O samurai alto caiu no chão sem nenhuma cerimônia, pareceu uma árvore que acabaram de cortar. Um quarto samurai, de rosto enrugado, bigode encerado e fazendo careta de dor, aparece da rua com uma lança na mão e parece que a jogou contra a ronin! A garota em farrapos tromba novamente contra a porta e a lança perfura a porta, quase que acerta ela! Mayuki solta um gemido e se afasta o máximo que pode da porta, faca de cozinha a mão - se a garota em farrapos pode com um porrete, eu posso assusta-los com a faca, não posso?

Mayuki fecha os olhos apertando firme a faca com as duas mãos e reza para que a luta acabe. Depois do que pareceu ser uma eternidade, os barulhos se cessam, quando ela abre os olhos vê a porta tingida de vermelho e toda quebrada.

- Acabou? Sua mãe pergunta lá de dentro de seu quarto, Mayuki pisca sem nada dizer, fica daquele jeito por não sabe quanto tempo, mas lhe parece ter sido muito. Não havia som dos samurais indo embora, nem da maltrapilha continuando sua fuga frenética. Tudo que via pelas sombras da porta (e pelos imensos sulcos de espada nela) era uma figura feminina sentada e escorada na porta. Mayuki concluiu que de alguma forma a fugitiva conseguiu vencer os quatro samurais com aquele porrete, mesmo assim não conseguia se mover paralisada pela apreensão. Tudo que conseguia fazer é ficar ouvindo o silencio e ver uma mancha de sangue crescer e invadir a casa.

- Coloque a pequena dama logo para dentro, garota! Sua mãe esbraveja. 

- Pequena dama? Não há pequena dama nenhuma lá fora. Há uma mulher bem crescida em farrapos. Provavelmente é a fugitiva que falavam e ela acabou de matar quatro samurais! Deve estar morta agora! 

Mayuki grita de volta. Ela nasceu nesta vila, mas logo se mudou com seus avós para outra cidade, onde se tornou Maiko – ia se tornar uma Gueixa quando conheceu Konichi e voltou para sua cidade natal. Nunca havia visto a pequena dama e não entendia a admiração que o povo daquela vila tinha por uma garotinha nobre e traidora. Se perguntassem para ela, Mayuki responderia que a garotinha havia morrido há muito tempo, junto com toda a nobreza que aquela cidade tinha.

- Não me contrarie e coloque logo a pequena dama para dentro! E reze que a sua demora em reagir não a tenha matado!

Sua mãe iria cacarejar até que fizessem o que ela pedia. Com um suspiro e já se arrependendo, Mayuki obedeceu e abriu a porta, o corpo da mulher logo cai para dentro, ela estava bastante ferida, mas ainda estava viva, pois se movia semi consciente, meio que tentando lutar, meio que se levantar. Seus olhos azuis brilhando confusos ao sol, olhando para os samurais lá caídos, como se esperasse que eles se levantassem.

-Calma, calma! Sou Mayuki, vou lhe ajudar, você está ferida e cansada, vou lhe colocar a salvo em minha casa. Sussurrou para a moribunda.

- Ora... Mayuki. A moribunda olha com olhos aliviados para ela e dá um sorriso enquanto relaxa o corpo. - Obrigada. E com essas palavras desfaleceu em seus braços. Pequena dama ou não aquela mulher tinha algo especial, aqueles olhos azuis só podiam significar que ela tinha o sangue dos Kami, mas como?  Mesmo sendo a pequena dama, nenhum Higoi tinha o sangue dos Kami, olhos azuis assim era característica de Yuye no Kami, e apenas os Date possuíam olhos assim...

- Traga-a logo para dentro e trate de seus ferimentos! Sua mãe gritou a tirando de seus devaneios. -Dê um bom banho nela e faça com que ela se recupere, ela é nossa pequena dama e devemos muito aos nossos senhores Higoi, pretendo pagar cada centavo! Aqui ela estará a salvo, aqui será o esconderijo dela. - 

Mayuki achava aquilo uma loucura, mas estava bem claro que aquela não era uma vagabunda com um porrete qualquer que ela havia julgado e nunca vira sua mãe tão entusiasmada. Contagiada, Mayuki ficou determinada a ajudar.

-Crianças! Preparem um banho e me ajudem com a Pequena Dama, temos muito que fazer!

                                                                              ***

Era seu esconderijo, seu local de salvação - apesar dos horrores que ela foi obrigada a presenciar, seus pais tão perto dela, mesmo na morte. Seus líquidos vitais penetrando o chão e gotejando, grudento, ao seu redor. Ela não gritou, não fez nenhum som, um feito surpreendente mesmo para um filho de samurais como Muzubushi e Mayumi.

Date Masakane só pôde imaginar o que aquela garotinha passou neste tempo todo escondida abaixo do piso do templo, um ambiente sagrado profanado por batalha e sangue. O mínimo que Masakane podia fazer é mandar que os corpos dos mortos fossem cuidados de forma honrada. O corpo de Mayumi foi tratado com todo o respeito que merece, sendo purificado e cremado, os corpos dos guerreiros Higoi receberam o mesmo tratamento, com a exceção dos principais comandantes. Suas cabeças foram arrancadas como troféu. A cabeça de Muzubushi foi cortada e enviada para seu cruel primo, Higoi Ooshibu. O troféu servia tanto para mostrar a Ooshibu que qualquer resistência Higoi seria punida severamente, quanto para mostrar que seu principal rival para a sua consolidação ao poder estava eliminado. Com Muzubushi fora do caminho, os Kora perdiam sua principal base de apoio dos Higoi leais a eles, e a linhagem de Ooshibu ganhava força, o que reforçava a facção Higoi leal aos Date. Com esta vitória, os Kora perderam qualquer chance de vitória nesta guerra, mas para isso se consolidar, algo deveria ser feito com a garotinha.

Encontrou a pequena dama enquanto supervisionava os serviçais no despacho dos corpos dos ilustres defensores Higoi. A princípio pensava ser a ação de algum animal sutil movendo-se embaixo do tatami quando ninguém estava por perto, mas logo percebeu que se tratava de uma criança. Não disse nada, no entanto, pois queria ver como a criança havia sido instruída pelos pais e não queria que ninguém mais notasse a presença da criança como ele notou. Resolveu observar escondido enquanto os serviçais terminavam o trabalho de limpeza do templo do castelo.

Ao cair da noite, Masakane ordenou que o deixassem sozinho no santuário, foi até a estátua de Raman e fez uma pequena prece, foi até o grande portão do santuário e o fechou pesadamente, após isso silenciosamente se ocultou atrás de uma das grandes pilastras que davam sustentação ao salão e começou a observar. 

Demorou um longo tempo na escuridão e no silêncio para a garotinha começar seu empreendimento de fuga. Com esforço ela move a pesada seção de tatami que servia como alçapão para o esconderijo, ao terminar de abrir - tomando cuidado para que a peça não caia estrondosamente no chão - a garota sai e antes de tomar algum rumo, senta-se a entrada para recuperar um pouco de fôlego e para choramingar baixinho. 

Ainda choramingando, ela começa a vaguear até as imagens dos ramans e kamis. Neste momento, Masakane se põe na ponta dos pés e utiliza de toda sua furtividade para se aproximar da menina sem ser notado. - Seria ela a filha de Higoi Muzubushi, a pequena dama? Indaga-se o comandante Date. Só há um jeito de saber, Masakane ouviu dizer que a filha do casal possui uma marca única que a indica como favorecida pelos kami, marca tal que não é compartilhada pelos seus pais.

Masakane caminha satisfeito de não ter sido notado pela garotinha que agora segura a mão reverente de Raman, usando suas duas mãos e começa a puxá-lo. A garota usa todo o peso do corpo para puxar a mão da Estátua que parece começar a ceder a pressão. Súbito, a mão da estátua se inclina, como uma maçaneta, e um clique é ouvido quando a uma seção da barriga de bronze de Raman se abre como uma porta, revelando uma passagem secreta. A abertura é pequena demais para que um homem adulto  possa passar sem engatinhar, mas grande o bastante para a garotinha entrar sem maiores problemas. A menininha suspira se recuperando do esforço e encara a abertura. Antes de dar o primeiro passo para a saída, ela joga um último olhar para trás. Seu olhar confronta diretamente o Obi azulado de Masakane, e o Date não perde tempo em tomar pelo braço a assombrada garota que começa a gritar de susto, mas Masakane interrompe sua histeria abafando sua boca com sua outra mão. De nada serviria toda aquela discrição se o castelo inteiro pudesse ouvi-la, e ele não queria que ninguém mais soubesse de seu achado, não agora, talvez nunca. 
Pois ao ver o rosto da garotinha percebeu que grande kami a havia abençoado, pois seus olhos eram azuis como os da abençoada Yuye-no-Kami... como os seus próprios. 

Glossário de Termos

Gueixa: Gueixa, em Ryu Tazai significa “Pessoa das Artes” e  é uma profissão sem paralelo. Gueixas são especialistas em entretenimento, sendo treinadas em canto, dança, tocar instrumentos musicais, cerimônia do chá e também são bem instruídas em etiqueta, comportamento e conhecimentos gerais para que sejam uma companhia agradável e que possam acompanhar qualquer assunto que seus clientes quiserem conversar. Uma gueixa faz companhia para os clientes, inclusive saindo com eles para eventos se for pedido, mas elas não são prostitutas, embora possam ter relações sexuais com os clientes se assim escolherem. Em Ryuu Tazai existem Gueixa tanto homens quanto mulheres, mas como Gueixas homens são mais infrenquentes que Gueixas mulheres, a versão masculina é chamada Otoko Geisha.

Maiko: Aprendiz de Gueixa. Aprendizes de gueixa homens se chamam Maijin.


Yuye-no-Kami: Um dos cinco grandes Kami de Ryuu-Tazai. Yuye-no-Kami é a deusa da perefeição e os Date se dizem descendentes dela. Yuye no Kami tinha olhos azuis e muitos Date também tem, reforçando a tese.