Por fim, chega o silêncio no pequeno pátio que até segundos
atrás estava cheio de gritos de dor e ossos se partindo, berros de comando e
desespero, lâmina contra carne, madeira contra osso, mas após um turbilhão de
sons violentos, o silêncio chega. Um castigado corpo se encontra encostado
contra uma porta de uma humilde casa, uma pavorosa mancha de sangue enquadra um
rasgo na sessão superior da porta, logo acima do corpo. O corpo é de uma jovem,
seu rosto deformado por escoriações, seu corpo trespassado por meia dúzia de
rasgos, em suas mãos inertes, uma maciça espada de madeira afogada em sangue.
Ao seu redor, quatro corpos trajando roupas e armaduras que os distinguem como
soldados, alguns ainda seguram suas lanças e espadas, num esforço fútil de seus
membros em manter os corpos imóveis dos guerreiros armados, outros jazem de
palmas abertas, como se tentassem se arrastar para longe da luta.
Quebrando o silêncio com um esforçado barulho de arrasto, a
porta semidestruída da humilde casa se abre, fazendo o corpo ferido da jovem
cair para dentro.
Mayuki nem sequer sabia o porquê pessoas estavam se matando
logo no pátio ao lado da casa de sua mãe, sabia que haveria uma execução de uma
fugitiva no pátio principal. Mas se era uma execução, porque haveria luta? E se
mesmo que ocorressem lutas em execuções, afinal samurais são sempre bem
imprevisíveis, porque justo no pátio de sua mãe, que fica a dois quilômetros do
pátio do templo?
Mayuki morava próximo ao templo, e estava feliz que o jovem
comandante Kôra tivesse escolhido se instalar na casa do magistrado, que fica perto das ruínas do antigo Palácio Higoi, pois isso deixava os samurais bem longe dela.
Mas então,
quando eles começaram a dizer que iriam executar um fugitivo no pátio do
templo, ela se mudou temporariamente para a casa de sua mãe com seus filhos e
seu marido, pois ela não queria que seus filhos assistissem uma execução - e
também temia que os samurais não estivessem satisfeitos com apenas uma execução
e buscassem alguns camponeses para saciar sua sede de sangue.
Seu marido não está lá. Aquele tonto foi correndo assistir a
execução e a deixou sozinha junto com sua mãe e filhos, de repente guardas
aparecem e dizem que todos devem permanecer em suas casas, com aqueles apitos e
lanternas, logo depois disso uma GUERRA acontece no pátio ao lado da casa de
seus pais, onde crianças costumam brincar de Kemari.
Quando era mais moça, Mayuki era considerada uma princesa de
tão bonita, muitos homens queriam casar com ela, mas por conta de um amor tolo,
acabou casando com um patife que só pensa em gastar seus ganhos com jogo. Hoje
Mayuki está toda acabada, seus cabelos outrora negros e vistosos estão
quebrados aqui e ali e com fios brancos, que ela esconde estes defeitos com o
cabelo mais elaborado que sua vida de trabalho permite, ela ainda encontra
tempo para raspar suas sobrancelhas, mas maquiagem nem pensar, já que o sol e a
água do trabalho em casa e na cozinha acabam por borrar ela toda, os kimonos
coloridos deram lugar a roupas mais práticas e apagadas. Tudo isso porque ela
precisa trabalhar em dobro, já que tudo que seu marido ganha vai para o jogo.
Sua mãe mandou que ela fosse vigiar a porta, para avisar a
todos se aparecesse perigo. Ela vigiar? Porque justo ela?
- Você quer que eu vá vigiar no lugar? Quer que eu me
arraste até a porta e enfie minha velha carcaça em perigo? Ou você quer que seu
pai volte dos mortos para fazer isso? Ou quer que seus filhos façam isso e
confundam o barulho com uma brincadeira? Ah! já sei, mande seu marido, aquele
idiota. Espere um momento, ele não está aqui! Minha memória vive me pregando
peças!
Foi o que sua mãe lhe respondeu, e, apesar do sarcasmo
ácido, ela tem toda a razão, sua mãe, Obayuki, é muito velhinha e as pernas se
tornaram finas como gravetos, ela mal consegue andar mais, nem com ajuda de sua
velha bengala. Seu pai morreu a meia década atrás, parecia ter mais vigor que
sua mãe e, mesmo velho continuava trabalhando como tecelão. Um belo dia, ele lá
estava reparando uma rede de pesca quando de repente vira os olhos e cai morto,
tamanha a pressa que os deuses queriam que ele se fosse.
Seus filhos são
pequenininhos, a menina mais velha tem 10 anos, o mais novo tem 8, embora eles
já tenham toda a esperteza que essas crianças de hoje em dia tem, ainda são
crianças e não podem se arriscar vigiando o que parece ser uma invasão inimiga
digna das histórias que os mais velhos da cidade contam que já aconteceu. Já
seu marido, maldito Konichi, porque ela foi se casar com ele, e o pior que é só
ele vir com aquele sorriso bobalhão para ela o perdoar, que raiva.
Alguém tromba contra a porta fazendo o coração de Mayuki ir
para a boca. Estou muito velha para isso, ela pensa. Mais golpes de espada e
mais gritos. Ela espia pelo buraco que fizeram na porta (o magistrado vai ter
que pagar!) e vê que o que parecia uma guerra eram só três guerreiros
completamente armados e armadurados contra uma mulher em farrapos e um porrete!
Como uma guerra pode sair disso?
Mayuki continua olhando, a garota está de costas para a casa
de sua mãe, um homem usando um jingasa de ferro duas vezes o tamanho dela
parece estar se preparando para executá-la, com sua espada alta apontada para o
céu. A garota tem apenas aquele porrete enfiado em seu obi, para Maiuki nunca
que ela conseguirá tirar aquele porrete da cintura antes do grande samurai a
partir em dois. Para sua surpresa, a mulher saca aquele porrete com tanta
velocidade que Mayuki só nota que ela o fez ao ouvir o eco do golpe do porrete
contra o rosto do samurai antes que ele pudesse completar seu ataque! O samurai
alto caiu no chão sem nenhuma cerimônia, pareceu uma árvore que acabaram de
cortar. Um quarto samurai, de rosto enrugado, bigode encerado e fazendo careta
de dor, aparece da rua com uma lança na mão e parece que a jogou contra a
ronin! A garota em farrapos tromba novamente contra a porta e a lança perfura a
porta, quase que acerta ela! Mayuki solta um gemido e se afasta o máximo que
pode da porta, faca de cozinha a mão - se a garota em farrapos pode com um
porrete, eu posso assusta-los com a faca, não posso?
Mayuki fecha os olhos apertando firme a faca com as duas
mãos e reza para que a luta acabe. Depois do que pareceu ser uma eternidade, os
barulhos se cessam, quando ela abre os olhos vê a porta tingida de vermelho e toda
quebrada.
- Acabou? Sua mãe pergunta lá de dentro de seu quarto,
Mayuki pisca sem nada dizer, fica daquele jeito por não sabe quanto tempo, mas
lhe parece ter sido muito. Não havia som dos samurais indo embora, nem da
maltrapilha continuando sua fuga frenética. Tudo que via pelas sombras da porta
(e pelos imensos sulcos de espada nela) era uma figura feminina sentada e
escorada na porta. Mayuki concluiu que de alguma forma a fugitiva conseguiu
vencer os quatro samurais com aquele porrete, mesmo assim não conseguia se
mover paralisada pela apreensão. Tudo que conseguia fazer é ficar ouvindo o
silencio e ver uma mancha de sangue crescer e invadir a casa.
- Coloque a pequena dama logo para dentro, garota! Sua mãe
esbraveja.
- Pequena dama? Não há pequena dama nenhuma lá fora. Há uma
mulher bem crescida em farrapos. Provavelmente é a fugitiva que falavam e ela
acabou de matar quatro samurais! Deve estar morta agora!
Mayuki grita de volta.
Ela nasceu nesta vila, mas logo se mudou com seus avós para outra cidade, onde
se tornou Maiko – ia se tornar uma Gueixa quando conheceu Konichi e voltou para
sua cidade natal. Nunca havia visto a pequena dama e não entendia a admiração
que o povo daquela vila tinha por uma garotinha nobre e traidora. Se perguntassem
para ela, Mayuki responderia que a garotinha havia morrido há muito tempo,
junto com toda a nobreza que aquela cidade tinha.
- Não me contrarie e coloque logo a pequena dama para
dentro! E reze que a sua demora em reagir não a tenha matado!
Sua mãe iria cacarejar até que fizessem o que ela pedia. Com
um suspiro e já se arrependendo, Mayuki obedeceu e abriu a porta, o corpo da
mulher logo cai para dentro, ela estava bastante ferida, mas ainda estava viva,
pois se movia semi consciente, meio que tentando lutar, meio que se levantar.
Seus olhos azuis brilhando confusos ao sol, olhando para os samurais lá caídos,
como se esperasse que eles se levantassem.
-Calma, calma! Sou Mayuki, vou lhe ajudar, você está ferida
e cansada, vou lhe colocar a salvo em minha casa. Sussurrou para a moribunda.
- Ora... Mayuki. A moribunda olha com olhos aliviados para
ela e dá um sorriso enquanto relaxa o corpo. - Obrigada. E com essas palavras
desfaleceu em seus braços. Pequena dama ou não aquela mulher tinha algo
especial, aqueles olhos azuis só podiam significar que ela tinha o sangue dos
Kami, mas como? Mesmo sendo a pequena
dama, nenhum Higoi tinha o sangue dos Kami, olhos azuis assim era característica
de Yuye no Kami, e apenas os Date possuíam olhos assim...
- Traga-a logo para dentro e trate de seus ferimentos! Sua mãe
gritou a tirando de seus devaneios. -Dê um bom banho nela e faça com que ela se
recupere, ela é nossa pequena dama e devemos muito aos nossos senhores Higoi,
pretendo pagar cada centavo! Aqui ela estará a salvo, aqui será o esconderijo
dela. -
Mayuki achava aquilo uma loucura, mas estava bem claro que aquela não
era uma vagabunda com um porrete qualquer que ela havia julgado e nunca vira
sua mãe tão entusiasmada. Contagiada, Mayuki ficou determinada a ajudar.
-Crianças! Preparem um banho e me ajudem com a Pequena Dama,
temos muito que fazer!
***
Era seu esconderijo, seu local de salvação - apesar dos
horrores que ela foi obrigada a presenciar, seus pais tão perto dela, mesmo na
morte. Seus líquidos vitais penetrando o chão e gotejando, grudento, ao seu
redor. Ela não gritou, não fez nenhum som, um feito surpreendente mesmo para um
filho de samurais como Muzubushi e Mayumi.
Date Masakane só pôde imaginar o que aquela garotinha passou
neste tempo todo escondida abaixo do piso do templo, um ambiente sagrado
profanado por batalha e sangue. O mínimo que Masakane podia fazer é mandar que
os corpos dos mortos fossem cuidados de forma honrada. O corpo de Mayumi foi
tratado com todo o respeito que merece, sendo purificado e cremado, os corpos
dos guerreiros Higoi receberam o mesmo tratamento, com a exceção dos principais
comandantes. Suas cabeças foram arrancadas como troféu. A cabeça de Muzubushi
foi cortada e enviada para seu cruel primo, Higoi Ooshibu. O troféu servia
tanto para mostrar a Ooshibu que qualquer resistência Higoi seria punida
severamente, quanto para mostrar que seu principal rival para a sua
consolidação ao poder estava eliminado. Com Muzubushi fora do caminho, os Kora
perdiam sua principal base de apoio dos Higoi leais a eles, e a linhagem de
Ooshibu ganhava força, o que reforçava a facção Higoi leal aos Date. Com esta
vitória, os Kora perderam qualquer chance de vitória nesta guerra, mas para
isso se consolidar, algo deveria ser feito com a garotinha.
Encontrou a pequena dama enquanto supervisionava os
serviçais no despacho dos corpos dos ilustres defensores Higoi. A princípio
pensava ser a ação de algum animal sutil movendo-se embaixo do tatami quando
ninguém estava por perto, mas logo percebeu que se tratava de uma criança. Não
disse nada, no entanto, pois queria ver como a criança havia sido instruída
pelos pais e não queria que ninguém mais notasse a presença da criança como ele
notou. Resolveu observar escondido enquanto os serviçais terminavam o trabalho
de limpeza do templo do castelo.
Ao cair da noite, Masakane ordenou que o deixassem sozinho
no santuário, foi até a estátua de Raman e fez uma pequena prece, foi até o
grande portão do santuário e o fechou pesadamente, após isso silenciosamente se
ocultou atrás de uma das grandes pilastras que davam sustentação ao salão e
começou a observar.
Demorou um longo tempo na escuridão e no silêncio para a
garotinha começar seu empreendimento de fuga. Com esforço ela move a pesada
seção de tatami que servia como alçapão para o esconderijo, ao terminar de
abrir - tomando cuidado para que a peça não caia estrondosamente no chão - a
garota sai e antes de tomar algum rumo, senta-se a entrada para recuperar um
pouco de fôlego e para choramingar baixinho.
Ainda choramingando, ela começa a
vaguear até as imagens dos ramans e kamis. Neste momento, Masakane se põe na
ponta dos pés e utiliza de toda sua furtividade para se aproximar da menina sem
ser notado. - Seria ela a filha de Higoi Muzubushi, a pequena dama? Indaga-se o
comandante Date. Só há um jeito de saber, Masakane ouviu dizer que a filha do
casal possui uma marca única que a indica como favorecida pelos kami, marca tal
que não é compartilhada pelos seus pais.
Masakane caminha satisfeito de não ter sido notado pela
garotinha que agora segura a mão reverente de Raman, usando suas duas mãos e
começa a puxá-lo. A garota usa todo o peso do corpo para puxar a mão da Estátua
que parece começar a ceder a pressão. Súbito, a mão da estátua se inclina, como
uma maçaneta, e um clique é ouvido quando a uma seção da barriga de bronze de
Raman se abre como uma porta, revelando uma passagem secreta. A abertura é
pequena demais para que um homem adulto
possa passar sem engatinhar, mas grande o bastante para a garotinha
entrar sem maiores problemas. A menininha suspira se recuperando do esforço e
encara a abertura. Antes de dar o primeiro passo para a saída, ela joga um
último olhar para trás. Seu olhar confronta diretamente o Obi azulado de
Masakane, e o Date não perde tempo em tomar pelo braço a assombrada garota que
começa a gritar de susto, mas Masakane interrompe sua histeria abafando sua
boca com sua outra mão. De nada serviria toda aquela discrição se o castelo
inteiro pudesse ouvi-la, e ele não queria que ninguém mais soubesse de seu
achado, não agora, talvez nunca.
Pois ao ver o rosto da garotinha percebeu que
grande kami a havia abençoado, pois seus olhos eram azuis como os da abençoada
Yuye-no-Kami... como os seus próprios.
Glossário de Termos
Gueixa: Gueixa, em Ryu Tazai significa “Pessoa das Artes” e é uma profissão sem paralelo. Gueixas são
especialistas em entretenimento, sendo treinadas em canto, dança, tocar
instrumentos musicais, cerimônia do chá e também são bem instruídas em
etiqueta, comportamento e conhecimentos gerais para que sejam uma companhia
agradável e que possam acompanhar qualquer assunto que seus clientes quiserem
conversar. Uma gueixa faz companhia para os clientes, inclusive saindo com eles
para eventos se for pedido, mas elas não são prostitutas, embora possam ter
relações sexuais com os clientes se assim escolherem. Em Ryuu Tazai existem
Gueixa tanto homens quanto mulheres, mas como Gueixas homens são mais
infrenquentes que Gueixas mulheres, a versão masculina é chamada Otoko Geisha.
Maiko: Aprendiz de Gueixa. Aprendizes de gueixa homens se
chamam Maijin.
Yuye-no-Kami: Um dos cinco grandes Kami de Ryuu-Tazai.
Yuye-no-Kami é a deusa da perefeição e os Date se dizem descendentes dela. Yuye
no Kami tinha olhos azuis e muitos Date também tem, reforçando a tese.