Cavalo Marinho
Alpa, Galei – 23 de Décio de 1909
Vossa Excelência Comissária Zénith,
Antes de mais nada, obrigado por deixar aventurar-me em território estrangeiro. O caso estava engavetado no departamento da cidade de Lily e todas as vítimas ficariam sem descanso com seu assassino vagando impune. Desde o último assassinato que se passou em Fremísia (caso Gastón Soleil, de 1906), nunca mais se teve notícia de uma morte com características semelhantes em nossa república, com a graça dos bons deuses. Mas o assassino nunca foi pego.
A senhora pode bem se lembrar como o fato de não termos o capturado me deixou arrasado. Nunca parei com as investigações, o que foi visto como indício de loucura, uma obsessão. Meus detratores podem estarem certos, mas eu sabia que ele voltaria a atacar, apenas não esperava que fizesse isso no exterior. Como o caso é antigo e perturbador, ofereço a vossa excelência uma explanação dele nas linhas abaixo.
Foram ao todo cinco crianças mortas, de 3 a 8 anos de idade, quatro meninas, um garoto. Todas elas membros de famílias ricas, todas elas deixadas em casa enquanto seus familiares viajavam. Os casos são bastante afastados uns dos outros. Os dois primeiros, Marienne Hache e Loretta Du Lounge foram no mesmo ano de 1899. Ambas meninas encontradas decapitadas em suas casas. Suas cabeças nunca foram encontradas. A cidade de Lily ficou apavorada, nenhuma família rica queria viajar, foram enforcados dois ladrões e um assassino, Gerard Herbe. O homem não era o Decapitador, apenas um assassino de aluguel que caiu em desgraça com o crime organizado. Virou bode expiatório na busca pelo assassino e pagou o último preço.
Houve mais três assassinatos, um novo em Lily, em 25 de Décio 1900, outro na cidade de Loire, em 29 de Vidigácio de 1903 e o último, na capital Cennón, em 20 de Luna de 1906. Até o último, as vítimas eram todas meninas, sendo o de 1906 um menino. Sei o que falam no departamento. Que é um imitador, pois não decapita as vítimas, apenas abre o topo do crânio e espalha o cérebro da criança no chão, levando um pedaço dele. Mas eles estão enganados. É o mesmo, Vossa Excelência. E provo nas linhas abaixo.
Finalmente, quando ouvi a respeito do assassinato de Anabelli Grazzo nos Alpes Galevos tinha certeza de que se tratava do assassino que andava a procura. Anabelli foi encontrada pelo mordomo da família, em seu quarto, com o topo do crânio aberto e seu cérebro descartado ao lado, com a exceção de uma parte. Acredito que a fixação do assassino seja pelas memórias de suas vítimas. As duas primeiras ele removia a cabeça inteira, pois na época, não se tinha certeza de que parte do cérebro se origina as memórias. Mas, com o avanço da ciência, se descobriu que as memórias são armazenadas num órgão do cérebro chamado hipocampo – justo a parte que ele remove. Creio que o assassino seja abastado e escolarizado, um presto cirurgião. E que acredite que as memórias de crianças com boa infância (comumente de famílias ricas) sejam as mais adequadas para o que quer que este bastardo esteja fazendo. Felizmente, ainda não sou doido o bastante para imaginar o que este desprezível faz com esta parte do cérebro de suas vítimas, só tenho certeza de uma coisa, ele sempre volta para ter mais. Não desta vez, desta vez irei pegá-lo.
A seu serviço,
Detetive Teneriff Bastion.
A missiva acima foi expedida pelo detetive Bastion no dia 23 de Décio de 1909, desde então o referido oficial não voltou a se apresentar nem entrou em contato, o que desencadeou uma busca para localizá-lo nos Alpes Galevos.
A equipe de busca comandada pelo Tenente Leoncio Honoret seguiu os rastros de monsenhor Bastion até um chalé incrustrado nos alpes. O local estava limpo, com sinais de ter a fronte e as paredes regularmente limpas e livres do acúmulo da neve. O equipamento de esqui bem-organizado e devidamente regulado. Tudo sendo realizado por funcionários de companhias de terceiros, que foram instruídos a realizarem seu trabalho e irem embora, sem terem acesso ao interior. Entrega de comida e leite, em porções frugais eram feitas regularmente, com instruções de serem depositadas no elevador externo do chalé. Tudo indicava que o local estava habitado, mas não havia ninguém para abrir a porta. Honoret recebeu autorização de entrada forçada uma vez confirmada que o chalé estava alugado em nome de pessoa inexistente.
O chalé estava muito bem limpo e aquecido, sua decoração era sutil e de bom gosto, com motivos típicos do povo alpino Galevo. Troféis de caça, um par de armas decorando a parede, estantes de livros, mesa sólida com cinzeiro, uma grande lareira automática. Haviam porta-retratos às mesa, mas sem nenhum retrato posto neles. Além desta curiosidade, havia uma fina camada de poeira acumulada no assoalho e móveis, indicando que este não era usado a certo tempo. Não havia sinais de monsenhor Bastien até a equipe de busca resolver descer para o porão.
O porão estava desobstruído e devidamente aquecido, embora a temperatura estivesse um pouco acima do normal.
O ambiente estava escuro e uma luz forte prateada dominava o local, a luz vinha de uma espécie estranha de projetor, possuindo uma misteriosa entrada traseira circular, onde estava encaixado uma perfeita cápsula metálica. O aparato projetava sobre uma tela, uma espécie de fotomóvel onde se passava cenas bucólicas de uma criança brincando com uma rede na tentativa de capturar borboletas. O fotomóvel era feito de uma forma que dava a impressão do expectador estar acompanhando a criança na brincadeira.
Ao lado do dispositivo havia uma confortável poltrona de couro forrado com peles, posicionado de frente a uma mesa onde havia um cinzeiro e uma caixa de charutos, além de uma carta selada depositada abaixo da caixa de charutos. Há poucos metros ao lado da poltrona um grande cesto metálico com vários tipos de alimentos acumulados pela semana, em variados estados de preservação – todos intocados.
Sentado na poltrona estava detetive Teneriff Bastion, ele estava com os olhos virados ao fotomóvel com um semblante de tranquilidade jovial, era possível se discernir um sorriso de sua fina boca. Saindo de sua calça havia um tubo que era ligado a uma grande bolsa de couro sintético depositada em um cesto oculto ao lado da poltrona. Ele estava preso a fios conectados a eletrodos em suas têmporas e um mais invasivo inserido em sua nuca. Os fios se conectavam diretamente ao aparato projetor.
Detetive Teneriff Bastion não respondia a nenhum chamado, quando Tenente Honoret foi balançá-lo notou que ele estava frio ao toque, foi quando ele mandou o médico que acompanhava a equipe examiná-lo. Detetive Bastion foi declarado morto, e se encontrava assim há pelo menos oito horas.
O tubo saindo de sua calça era um cateter que permitia o detetive a não precisar se levantar para se aliviar. A poltrona também era munida com uma latrina, na qual monsenhor Bastion se sentava. Monsenhor Bastion não estava preso de nenhuma forma, mesmo assim não parece ter tentado sair de lá ou buscar qualquer tipo de ajuda.
A carta embaixo da caixa de charutos estava endereçada para “Qualquer oficial da lei que assumir o manto do bom monsenhor Bastion”. E dizia:
O nosso mundo é cheio de paisagens, cheiros, sons, gostos e texturas cheias de surpresas. Rodeamo-nos de maravilhas e terrores o tempo todo, mas somos tão centrados em nós mesmos que tudo perde o glamour, tudo se torna banal, boçal, insosso, repetitivo, passageiro. Entenda, quando crescemos somos todos bombardeados de preocupações, responsabilidades, afazeres e prazos que nos forçamos a ignorar toda a beleza que o mundo é. Matando nossa percepção do belo, do que realmente importa e transformando nossas vidas numa casca seca.
Mas não as crianças.
As crianças não possuem os grilhões da vida adulta e podem gozar de toda a beleza do mundo impunemente! Se as pessoas pelo menos pudessem reviver a beleza do mundo através das memórias de uma criança, nunca mais se atrelariam as suas vidas sem significado e apenas sorveriam o mundo como ele é!
No começo, como um cientista iniciando seu caminho no desconhecido, eu agia com descuido. Removia a cabeça do paciente, com medo de danificar algo imprescindível ao experimento. O que era um inconveniente, pois é difícil ocultar um objeto de tamanho considerável como uma cabeça em um passeio noturno dos olhos de curiosos. Mas depois do segundo paciente, descobri que não é necessário toda a cabeça, apenas uma pequena porção de seu cérebro. O transporte passou a ser muito mais conveniente, sem falar que, isolando a parte correta e a tratando com cuidado o resultado é muito mais duradouro, me poupando de ter que ir a busca de pacientes de forma frequente quanto estava fazendo.
Chamo-o de memorografo, a máquina que criei. Você aplica o hipocampo do paciente numa jarra com a solução e acopla a jarra no memorografo, em seguida, liga através de dutos e uma seringa o aparelho ao seu próprio hipocampo. O resultado é como um filme de fotomóvel, mas com todas as sensações possíveis e impossíveis de uma legítima experiência infantil! As cores vibrantes e lindas os sons magníficos, as sensações são um gozo por si só! Temo estar me viciando com as experiências. Ah, mas vale a pena! Bons deuses, como vale a pena!