Este conto foi o primeiro que fiz de uma série que gostaria de ter feito sobre a origem de alguns super-heróis Brasileiros. Originalmente concebido em 2015, mas só finalizado em 2019.
O Retorno
A sensação de estar sendo observada me desperta, abro os olhos e uma forte e intensa luz fria me cega, estou deitada nua em uma superfície metálica, deveria ser fria, mas não é. Tento me mexer, mas não consigo, tento olhar para os lados, mas também não consigo - mal consigo sentir meu corpo, sinto como se não tivesse braços nem pernas. Meu coração acelera, quero gritar, urrar, mas não consigo. Ouço um murmúrio, mas não entendo nada, não é inglês nem português, na realidade não é nenhuma língua que já ouvi. E já ouvi muitas.
Uma pessoa se aproxima de mim, pálida como um fantasma, seu rosto um borrão, ele traz na mão uma espécie de agulha longa e grande, e a insere num fino tubo metálico que está ao meu lado. Meu olho acompanha o tubo, não consigo ver o final, o esforço faz o canto do meu olho doer.
A criatura murmura novamente, mais alto, não está falando comigo e aponta para meu corpo, tento olhar para onde, meu olho dói, vejo com meu olho direito, há algo na frente do esquerdo. Não consigo enxergar o que ele aponta, só vejo um tubo metálico, sinto algo frio no meu olho... Meu Deus! O tubo metálico, aquele tubo metálico, está enfiado no meu olho!
Subitamente o quarto se enche com a voz de John Paul Young.
***
Acordo com meu despertador tocando Love is in the Air de John Paul Young. Enquanto a música preenche meu quarto, choro como uma criança sentada em minha cama. Fazia anos que não tinha esse pesadelo, ter ele assim de repente foi um choque. Começou no início de minha gravidez, a ânsia do momento e a insegurança de ter um filho me traziam esses sonhos horríveis de mesa de operação, isso segundo minha terapeuta. Convenci-me disso e os sonhos sumiram, terem retornado assim, sem aviso foi muito ruim, não me lembrava como esse sonho era tão... vívido.
Sou Diretora de Marketing de uma grande companhia de automóveis norte-americana em Fortaleza. Normalmente essas reuniões são realizadas em São Paulo, mas semestralmente ela é feita em Nova Iorque. São cinco da manhã e meu vôo sairá em 2 horas, mais que o suficiente para chegar ao aeroporto e comer alguma coisa.
Meu celular toca, atendo pelo viva-voz do carro.
- Bom dia, meu querido! - é meu filho, Luís.
- Bom dia mãe, onde a senhora tá?
- Indo para o aeroporto, filho. Nova Iorque, lembra? Que foi, quer algo de lá? Não se preocupa que vou trazer aquele jogo que me pediu!
- Valeu mãe, mas tô ligando pra gente marcar de se encontrar no aeroporto, também vou viajar.
- Mas como assim? E a escola? Vai viajar com quem? Quem tá te levando? É seu pai?
- Não mãe, eu tô no meu carro?
- Teu carro?
- Deixa eu falar!
- Tá.
- Meu pai comprou um pra mim.
- Qual é?
- Um Gol.
- Gol? Nem mesmo um Ka? E o Ecosport que eu te falei?
- Ele me disse que eu poderei ter o carro que eu quiser quando puder pagar por ele.
- ... é, ele tem razão.
- Eu sei, escuta, vou com a Amanda para Recife.
- E a aula, filho? Os pais da Amanda estão sabendo?
- Mãe, hoje é 07 de Setembro, feriado. Amanhã é sábado e depois de amanhã é domingo, quando voltamos.
- Ah... Verdade
- Nos falamos mais lá, ok?
- Ok. Beijo, filho! Escuta, quando voltar quero ver esse golzim... - já desligou.
Meu filho, Luís. Um rapaz alto e bonito, 18 anos, pálido que parece doente, reservado e muito esperto. Mal terminou o Enem¹ e tem até convites de universidades conceituadas no mundo todo para estudar, mesmo assim prefere fazer Matemática na UFC², eu o amo, espero que ele saiba disso, a lembrança do sonho voltou agora e sinto grande apreensão, medo até - um mau pressentimento.
Estes sonhos quase destroem minha vida, estava enlouquecendo, chegando a dizer que meu ex-marido não era pai de Luís, que eram "os outros". Ele não suportou e acabamos nos separando, Luís foi morar com ele. Ia me perder completamente até que comecei a me tratar. O tratamento era pesado, tomava 3 remédios de prescrição médica, no início eles não pareciam fazer efeito nenhum, mas aos poucos fui me esquecendo do sonho, junto com tudo mais que havia vivido antes dele. O Psiquiatra disse que isso era efeito colateral dos medicamentos, mas, com o tratamento, acabou tudo bem.
Chego ao aeroporto, meu humor péssimo. Sinto uma angustia inexplicável, as memórias daquele horrível pesadelo voltando em flashes. Uma imensa preocupação pelo meu filho se abate em minha alma, luto desesperadamente para fazer a razão prevalecer, sinto meu corpo tremer com o esforço. - Dona, tá bem? - um rapaz alto de óculos escuros acompanhado por uma garota elegante e bonita me pergunta. Ambos me observam com solidariedade e preocupação polida. -Não, tudo bem, meninos, obrigada! - minto, sorrindo sem jeito, percebo que não pareço bem, com as mãos no capô do carro, fitando o nada e tremendo, não pareço bem porque não estou. Eles insistem em me acompanhar, a delicadeza deles me ajuda a me recompor e, agora visivelmente melhor, deixam-me sozinha.
Entro no Aeroporto e vou direto para a Praça de Alimentação, nem me importo em fazer o check in. Procuro por Luís no Café Donuts, lugar que combinamos nos encontrar e quase entro em pânico ao não vê-lo. Lembro-me que cheguei cedo, e que ele pode demorar um pouco mais, recomponho-me e vou fazer o check in.
***
Estou na iluminada varanda da minha antiga casa, Luís sorri para mim, ele está com 1 ano e já consegue falar, todos se surpreenderam muito com isso, "como ele é precoce!", diziam, eu sorrio de volta e ele vem até mim gritando "Mãe Guida!". Abraço-o forte, ele olha com aconchego para mim, como se estivesse sentindo prazer em me dar prazer. Ouço uma voz do nada falando numa língua que não compreendo, mas sei o que ela diz; "Ele é nosso".
Luís tem 14 anos agora, aquele olhar esperto dele, aqueles cabelos loiros desgrenhados jogados pra frente, mochila nas costas, com uniforme do colégio, magro e alto que dói. Estamos no meu carro, tenho uma reunião com sua diretora, aproveitei para levá-lo ao colégio, havia dito a ele que ia mais tarde hoje ao trabalho e poderia dar carona, por algum motivo achei que ele sabia que eu estava mentindo, mas não me falou nada. Ele está no 1º ano do ensino médio agora, tendo pulado dois anos. Seus amigos todos estão no 8º ano do fundamental, e no ginásio o chamam de vários nomes "pivete, moleque, bebê" são os menos ruins.
Ele não se importa com isso, não respondendo aos buliçosos. A diretora me falou que isso tem ocorrido, acho que ela me chamou para falar de alguma coisa que aconteceu com ele lá.
Enganei-me, a diretora me chamou para dizer que ele não está mais sendo importunado, muito pelo contrário, estão evitando-o. Ela não consegue explicar como isso aconteceu, do nada, e me perguntou se Luís não parecia ter se metido numa briga, eu respondo que não. "É um de nós", a voz descarnada fala, eu tremo.
***
- Senhora, senhora? Seu passaporte, por favor? - o rapaz do check in me olha preocupado, eu o ignoro e corro para o estacionamento, meu coração se aperta e dispara. "Ele é nosso, é um de nós" é o que continuo a ouvir em minha cabeça.
No estacionamento um grupo de curiosos se aglomera em volta de um gol vermelho que bateu numa das árvores do canteiro, a segurança do aeroporto já pede espaço para socorrer os passageiros, vejo apenas uma fumaça branca do radiador do veículo subindo.
Uma jovem é retirada pelo segurança com a ajuda de um taxista pelo lado do motorista, é Amanda. Acotovelo-me entre os curiosos gritando pelo nome de meu filho, as pessoas olham para mim perplexas, sem entender.
-Eu vi um raio cair no carro, do nada, daí ele se desgovernou e bateu na árvore. Foi esquisito, viu? - o taxista fala ao segurança. "Ele é nosso".
Amanda está com um corte horrível na testa, ela olha desesperada para mim e vem em minha direção, vejo o banco do motorista do carro, o painel amassado por cima, mas não há nenhum sinal do motorista lá, as pessoas ao redor parecem intrigadas com isso. "Será que o motorista fugiu?" "Devia estar bêbado!" "Será que morreu?" “Vocês viram aquele raio?" Eu temo o pior. - Amanda, cadê o Luís, Amanda!? "É um de nós"
-Dona Margarida - Amanda fala perdida - Luís simplesmente sumiu, tia! A luz pegou ele! Simplesmente sumiu!
"Ele é nosso, é um de nós", ouço com clareza na minha cabeça. O sol brilha forte no céu sem nuvens, testemunha e cúmplice dos acontecimentos abaixo. Não me dou conta, mas caio de joelhos, olhando para o astro tão quente e indiferente, grito uma negação, a mais profunda, prolongada e lamuriosa negação de minha vida.
- Devolvam meu Luís, é meu Luís!
1 - O Exame Nacional do Ensino Médio, mais conhecido como Enem, é uma prova que dá acesso às instituições de ensino superior. O Enem foi criado pelo MEC e lançado em 1998.
2 - Universidade Federal do Ceará
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