6 Conquistando a Montanha
Ainda estava me imaginando rodopiando e girando enquanto era carregada pelos ventos para longe, quando aos poucos comecei a parar de rodopiar e ia caindo lentamente no chão e pousando nele como um Tetraz pesadão e atrapalhado, para depois descansar na rocha. Passei a sentir a rocha e a neve no meu corpo, o ar gelado cortando minhas narinas, apesar de ter o rosto coberto por peles quentes. Acabei me lembrando da queda e, sem entender nada de como estava no chão, tentei abrir os olhos, mas eles estavam grudados por gelo. Então senti dedos gentis e quentinhos limpando meus olhos e, quando os abri, finalmente entendi que não estava voando nem nada. Eu estava deitada no chão do platô que tentei superar, enrolada em peles como um lombo de javali enrolado com barbante para manter o tempero dentro. Ao meu lado, lá estava Delsenora, tremendo de frio e de felicidade, batendo os dentes, mas ao mesmo tempo soltando gritinhos excitados de alívio enquanto limpava meu rosto todo com aquelas mãos finas e compridas. Notei que ela estava sem a capa de peles dela; ela tinha a usado para me dar uma proteção extra, a maluca.
— Calma agora, minha querida amiga! — falou Delsenora com sua vozinha delicada de ratinho enquanto terminava de limpar meu rosto, me admirando como se eu fosse a lua. — Levante-se com cuidado e sem pressa, eu estou aqui com você!
Eu comecei a me levantar e ela foi logo me apoiando e esfregando minhas costas como se eu fosse uma velha que levou um tombo. Era gostoso, não vou negar, dava para sentir mesmo que ela se importava muito comigo. À medida que minha lucidez voltou completamente, me dei conta da fogueirinha improvisada que ela fez ao nosso lado e percebi novamente o estado de Delsenora, e que só estávamos nós duas lá. As outras meninas não estavam em lugar nenhum, e o céu já se alaranjava. A primeira coisa que fiz foi me desenrolar daquele exagero de peles enquanto ela olhava assustada, tentando me controlar. Mas terminei de me desenrolar e empurrei a capa de peles dela no seu colo.
— Se proteja logo, sua louca! — briguei alto com ela. Lentamente ela foi sorrindo com aquele sorrisinho torto e se enrolando.
— Sim, senhora! Que bom que está de bom humor novamente! — falou entusiasmada. Mas eu não estava.
— Onde estão as outras? — perguntei preocupada, enquanto me aproximava da fogueira, abraçando os joelhos com os cotovelos para aproximar meus pés e bumbum para aquecê-los, enquanto botava minhas mãos bem perto do fogo e esfregava as articulações.
Delsenora virou os olhos, fez um muxoxo e um sorriso triste, enquanto vestia novamente a capa e se inclinava para a fogueira, se apoiando no cotovelo esquerdo, seus olhos evitando se cruzar com os meus enquanto respondia.
— Bem, elas decidiram continuar pelo caminho norte — começou, falando meio pausado, o que me irritou. — É mais perigoso por lá, mas é mais rápido, sabe? — Ela olhou para mim com um olhar de súplica. — Não podíamos voltar de mãos abanando, então elas decidiram pelo menos coletar por lá os arbustos do meio da montanha, competindo com os bodes, hihihi! — Ela falou isso de forma mais animada, me cutucando na coxa. Eu sorri sem graça, mas estava entendendo o que fiz.
— Nessa hora, os bodes já começam a desafiar a inclinação para ir atacar as frutinhas do platô de lá, mas todas elas são escaladoras experientes e... — Delsenora estava falando em tom de comédia, mas de repente pausou o relato e deu um grunhido sem graça. Eu estava com muita raiva, meu rosto pegando fogo e uma lágrima escaldante descendo minha bochecha. Ela parou de falar, mas eu continuei por ela.
— E não tinha mais ninguém para atrapalhar, não é? — falei com raiva, minha voz quebrando triste, mas estava com raiva de mim mesma.
Delsenora é bem honesta, ela olhou triste para a fogueira, sua boca parecendo um v invertido e balançou a cabeça em confirmação. Eu abracei minhas pernas forte e enfiei minha cabeça entre elas para esconder a vergonha e a tristeza que eu sentia de mim.
— Mas não fique assim, Serena, por favor! — Delsenora falou com sua voz tristonha. — Você é muito importante para mim, veja! — Ela sorriu, estufando o peito e levantando o braço direito no ar. — Fiquei aqui com você! Vamos descer juntas e haverá um novo dia! Uma nova tentativa! — Nem vi quanto tempo ela ficou com aquela pose boba, não tinha coragem de olhar para ela. Minha tristeza e culpa só aumentavam. Não conseguindo mais segurar, explodi em desabafo.
— Me desculpe, Delsenora, por favor! — falei a plenos pulmões enquanto soluçava e tremia de tristeza. — Eu fui uma idiota e arrogante e pus tudo a perder! Vocês pensaram tanto nessa escalada, foram tão atenciosas comigo e eu faltei com vocês! Eu sou uma inútil! Eu não sirvo para nada! — falei, não conseguindo mais conter o choro e o tremor no corpo.
Delsenora ficou com tanta pena que veio para o meu lado e começou a me abraçar forte, levando minha cabeça ao peito dela. Comecei a chorar lá como uma derrotada. Ela acariciava o meu cabelo e me abraçava, mas aí senti o abraço dela se afrouxar, as carícias dela no meu cabelo se tornarem quase puxões, e sentia o peito dela tremer em um rosnado de raiva.
— Onde está, hein? — perguntou indignada. Prendi a respiração sem entender o que ela queria dizer.
— Onde está aquela garota valente que quer ser um dia uma feroz guerreira, hm? — Ela me olhou com incomum repreensão nos olhos, bem, pelo menos acho que olhou, pois estava com os olhos arregalados com medo de olhar para ela. — Onde é que está aquela menina que desafia até o mais grandalhão dos meninos? Cadê aquela garota que não tem medo de nada? — Ela puxou meu corpo para cima e me forçou a olhar nos olhos dela, cintilando de furiosa determinação enquanto me chacoalhava os ombros. — Onde está aquela menina linda que ri do perigo, hm? Eu não sei quem é você e o que você fez com ela, mas eu quero que você a me devolva AGORA! — E me deu um tapa forte no rosto, que me fez olhar com raiva dela, meus músculos se empertigando, minha determinação voltando toda. Ela olhou meus olhos, encontrou o que queria achar e sorriu, não, ela riu.
— Eu a quero aqui, porque eu e ela vamos subir essa montanha juntas, e colher os frutos mais gostosos do topo! — falou fitando o topo da montanha, com malícia e desafio na voz que não lembro de ter visto nela antes.
Depois ela olhou de volta para mim, seu rosto cheio de determinação, mordiscando o cantinho da boca e falou com a vozinha engraçadinha dela de novo.
— Serena, eu tenho certeza de que você vai ser uma mulher incrível algum dia. E adoraria fazer parte de sua jornada, então o que me diz, só eu e você, hein? Juntinhas desafiando essa montanha, hm? — falou com seus típicos soluços de excitação. Eu nem sabia como reagir! Minhas lágrimas pararam e secaram na mesma hora. Só conseguia olhar para ela como uma boba sem reação! Achava até que era possível, sim, mas a realidade voltou com força. Eu não sabia escalar, ela sabia disso!
— Mas Delsenora, eu não sei escalar! Eu quase deixei tudo a perder! Você me convenceu, eu quero aprender, mas a luz está acabando, vamos descer agora e...
— NÃO, NÃO e NÃO! — Foi a vez dela explodir os pulmões em um grito indignado. Ela então voltou a me olhar com os olhos pequenos e redondos dela me fitando como uma lunática, seus dedos afundando como garras nos meus ombros. Ela me olhou com aquele jeito doido que me fez encolher, seus olhos dardejando rapidamente, pensando em algo enquanto mordia o lábio inferior que parecia que ia tirar sangue, até que parou, se recompôs e olhou animada para mim novamente.
— Você aprendeu a lutar com seus irmãos, não aprendeu? Então, por favor, Serena, deixe-me ser sua irmã de coleta e escalada! Deixe-me lhe ensinar, aqui e agora, nessa montanha. Se você fosse uma menina qualquer, eu concordaria com você e treinaríamos com desafios mais fáceis, mas você, sem treinamento nenhum, quase que chega lá! — apontou para o platô que quase consegui chegar. — E nós vamos chegar lá! Só peço que faça tudo o que eu fizer e mandar, como se eu fosse Dounir ou Beladas, e lhe garanto! Vamos estar saboreando as maiores e mais suculentas ameixas de gelo que já viu na vida! O que me diz, hein, hein, hein? — disse novamente, com aqueles gritinhos de excitação típicos dela.
Eu estava olhando para ela com os olhos arregalados. Daí ela começou com aquela voz normal boba dela de novo e eu ri alto. Eu acreditava nela! Acreditava que eu e ela juntas poderíamos vencer essa e todas as montanhas. Estava disposta sim a confiar na experiência dela e seguir cada um de seus passos. Quando olhei para ela novamente, não pude deixar de notar que, para mim, ela havia se transformado. Ela não era mais aquela menina boba da voz fininha e engraçada. Quer dizer, ela ainda era, mas era algo mais. Passei a olhar para ela como eu olho os guerreiros de nossa tribo. Do seu jeito, Delsenora era uma guerreira.
— Sim! Quero vencer essa montanha boboca e me empanturrar de ameixas de gelo e juníperos bem grandes e gordos! E ainda quero encher essas cestas e trazer um montão para baixo! — falei animada, todas minhas forças recuperadas.
Delsenora riu alto soltando um teatral "é isso!" enquanto erguia as mãos para cima em comemoração. Ela começou a animadamente apagar a fogueira, e eu fui ajudar com as cestas, mas aí notei que havia três, a minha, a dela e uma outra nova.
— Por que tem uma cesta extra? — perguntei intrigada com aquilo.
Ela, ainda animada, deu uns pulinhos sobre os calcanhares e abanou a mão.
— Ah, isso, não se preocupe! Era para negociar com os selvagens no topo.
— Selvagens no topo? — interrompi, preocupada. Ela piscou e notou que eu queria mais explicações.
— Sim, quero dizer, entenda. O topo também é território de coleta deles, então estávamos levando essa cesta para negociar com eles. A gente dá a cesta, e eles nos guiam para os melhores arbustos e não tentam nos roubar enquanto dormimos no ponto de descanso. — Ela então sorriu desdenhosa e completou. — Mas não se preocupe! A essa hora eles já devem ter ido embora.
Fiquei pasma. Selvagens? Os mesmos selvagens que descem das montanhas, vestidos apenas de peles, quando não nus, que atacam nossas tribos com selvageria sem precedentes, com armas cruas e mortais, sem demonstrar nenhum medo, que dizem que comem carne humana, se banham de neve e montam mamutes? Esses selvagens? E elas estavam acostumadas a lidar com eles? Elas tinham mais coragem e fibra do que eu imaginava ao sentir a dificuldade da escalada, se isso fosse verdade.
— Espera aí, Delsenora, são os selvagens que ajudaram os gigantes na batalha do Portão da Ferida do Mundo? — perguntei, no que ela parou para pensar casualmente, revirando os olhinhos para cima e deu de ombros.
— É, devem ser. Nunca parei para perguntar. — E soltou um risinho sonoro e boboca.
— E se eles ainda estiverem lá? — perguntei, me empertigando, querendo parecer corajosa. Delsenora pensou e deu novamente de ombros.
— Se eles ainda estiverem lá... vamos lidar com isso juntas, não é? Nós somos uma dupla imparável agora! — e soluçou em risinhos.
— Delsenora, você é completamente louca! Seria uma ótima guerreira, só tem que parar com essa vozinha de esquilo!
Ela riu com aquela vozinha que nem um esquilo. Começamos então a escalar aquela montanha, ela mostrando como se fazia e eu prestando atenção e repetindo. A lição foi dura, porque não tínhamos muita luz e tínhamos que subir rápido, mas eu aprendo rápido, e juntas superamos aquela montanha metro a metro. Até chegarmos em seu topo acompanhadas pelos últimos raios do sol. Chegamos ao seu topo, excitadas e um pouco assustadas, mas chegamos. Conquistamos a montanha, mas os desafios que enfrentaríamos nela iriam apenas começar.