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domingo, 16 de junho de 2024

A Campeã da Estrela do Norte - Parte 6: Conquistando a Montanha

 

6 Conquistando a Montanha


Ainda estava me imaginando rodopiando e girando enquanto era carregada pelos ventos para longe, quando aos poucos comecei a parar de rodopiar e ia caindo lentamente no chão e pousando nele como um Tetraz pesadão e atrapalhado, para depois descansar na rocha. Passei a sentir a rocha e a neve no meu corpo, o ar gelado cortando minhas narinas, apesar de ter o rosto coberto por peles quentes. Acabei me lembrando da queda e, sem entender nada de como estava no chão, tentei abrir os olhos, mas eles estavam grudados por gelo. Então senti dedos gentis e quentinhos limpando meus olhos e, quando os abri, finalmente entendi que não estava voando nem nada. Eu estava deitada no chão do platô que tentei superar, enrolada em peles como um lombo de javali enrolado com barbante para manter o tempero dentro. Ao meu lado, lá estava Delsenora, tremendo de frio e de felicidade, batendo os dentes, mas ao mesmo tempo soltando gritinhos excitados de alívio enquanto limpava meu rosto todo com aquelas mãos finas e compridas. Notei que ela estava sem a capa de peles dela; ela tinha a usado para me dar uma proteção extra, a maluca.

— Calma agora, minha querida amiga! — falou Delsenora com sua vozinha delicada de ratinho enquanto terminava de limpar meu rosto, me admirando como se eu fosse a lua. — Levante-se com cuidado e sem pressa, eu estou aqui com você!

Eu comecei a me levantar e ela foi logo me apoiando e esfregando minhas costas como se eu fosse uma velha que levou um tombo. Era gostoso, não vou negar, dava para sentir mesmo que ela se importava muito comigo. À medida que minha lucidez voltou completamente, me dei conta da fogueirinha improvisada que ela fez ao nosso lado e percebi novamente o estado de Delsenora, e que só estávamos nós duas lá. As outras meninas não estavam em lugar nenhum, e o céu já se alaranjava. A primeira coisa que fiz foi me desenrolar daquele exagero de peles enquanto ela olhava assustada, tentando me controlar. Mas terminei de me desenrolar e empurrei a capa de peles dela no seu colo.

— Se proteja logo, sua louca! — briguei alto com ela. Lentamente ela foi sorrindo com aquele sorrisinho torto e se enrolando.

— Sim, senhora! Que bom que está de bom humor novamente! — falou entusiasmada. Mas eu não estava.

— Onde estão as outras? — perguntei preocupada, enquanto me aproximava da fogueira, abraçando os joelhos com os cotovelos para aproximar meus pés e bumbum para aquecê-los, enquanto botava minhas mãos bem perto do fogo e esfregava as articulações.

Delsenora virou os olhos, fez um muxoxo e um sorriso triste, enquanto vestia novamente a capa e se inclinava para a fogueira, se apoiando no cotovelo esquerdo, seus olhos evitando se cruzar com os meus enquanto respondia.

— Bem, elas decidiram continuar pelo caminho norte — começou, falando meio pausado, o que me irritou. — É mais perigoso por lá, mas é mais rápido, sabe? — Ela olhou para mim com um olhar de súplica. — Não podíamos voltar de mãos abanando, então elas decidiram pelo menos coletar por lá os arbustos do meio da montanha, competindo com os bodes, hihihi! — Ela falou isso de forma mais animada, me cutucando na coxa. Eu sorri sem graça, mas estava entendendo o que fiz.

— Nessa hora, os bodes já começam a desafiar a inclinação para ir atacar as frutinhas do platô de lá, mas todas elas são escaladoras experientes e... — Delsenora estava falando em tom de comédia, mas de repente pausou o relato e deu um grunhido sem graça. Eu estava com muita raiva, meu rosto pegando fogo e uma lágrima escaldante descendo minha bochecha. Ela parou de falar, mas eu continuei por ela.

— E não tinha mais ninguém para atrapalhar, não é? — falei com raiva, minha voz quebrando triste, mas estava com raiva de mim mesma.

Delsenora é bem honesta, ela olhou triste para a fogueira, sua boca parecendo um v invertido e balançou a cabeça em confirmação. Eu abracei minhas pernas forte e enfiei minha cabeça entre elas para esconder a vergonha e a tristeza que eu sentia de mim.

— Mas não fique assim, Serena, por favor! — Delsenora falou com sua voz tristonha. — Você é muito importante para mim, veja! — Ela sorriu, estufando o peito e levantando o braço direito no ar. — Fiquei aqui com você! Vamos descer juntas e haverá um novo dia! Uma nova tentativa! — Nem vi quanto tempo ela ficou com aquela pose boba, não tinha coragem de olhar para ela. Minha tristeza e culpa só aumentavam. Não conseguindo mais segurar, explodi em desabafo.

— Me desculpe, Delsenora, por favor! — falei a plenos pulmões enquanto soluçava e tremia de tristeza. — Eu fui uma idiota e arrogante e pus tudo a perder! Vocês pensaram tanto nessa escalada, foram tão atenciosas comigo e eu faltei com vocês! Eu sou uma inútil! Eu não sirvo para nada! — falei, não conseguindo mais conter o choro e o tremor no corpo.

Delsenora ficou com tanta pena que veio para o meu lado e começou a me abraçar forte, levando minha cabeça ao peito dela. Comecei a chorar lá como uma derrotada. Ela acariciava o meu cabelo e me abraçava, mas aí senti o abraço dela se afrouxar, as carícias dela no meu cabelo se tornarem quase puxões, e sentia o peito dela tremer em um rosnado de raiva.

— Onde está, hein? — perguntou indignada. Prendi a respiração sem entender o que ela queria dizer.

— Onde está aquela garota valente que quer ser um dia uma feroz guerreira, hm? — Ela me olhou com incomum repreensão nos olhos, bem, pelo menos acho que olhou, pois estava com os olhos arregalados com medo de olhar para ela. — Onde é que está aquela menina que desafia até o mais grandalhão dos meninos? Cadê aquela garota que não tem medo de nada? — Ela puxou meu corpo para cima e me forçou a olhar nos olhos dela, cintilando de furiosa determinação enquanto me chacoalhava os ombros. — Onde está aquela menina linda que ri do perigo, hm? Eu não sei quem é você e o que você fez com ela, mas eu quero que você a me devolva AGORA! — E me deu um tapa forte no rosto, que me fez olhar com raiva dela, meus músculos se empertigando, minha determinação voltando toda. Ela olhou meus olhos, encontrou o que queria achar e sorriu, não, ela riu.

— Eu a quero aqui, porque eu e ela vamos subir essa montanha juntas, e colher os frutos mais gostosos do topo! — falou fitando o topo da montanha, com malícia e desafio na voz que não lembro de ter visto nela antes.

Depois ela olhou de volta para mim, seu rosto cheio de determinação, mordiscando o cantinho da boca e falou com a vozinha engraçadinha dela de novo.

— Serena, eu tenho certeza de que você vai ser uma mulher incrível algum dia. E adoraria fazer parte de sua jornada, então o que me diz, só eu e você, hein? Juntinhas desafiando essa montanha, hm? — falou com seus típicos soluços de excitação. Eu nem sabia como reagir! Minhas lágrimas pararam e secaram na mesma hora. Só conseguia olhar para ela como uma boba sem reação! Achava até que era possível, sim, mas a realidade voltou com força. Eu não sabia escalar, ela sabia disso!

— Mas Delsenora, eu não sei escalar! Eu quase deixei tudo a perder! Você me convenceu, eu quero aprender, mas a luz está acabando, vamos descer agora e...

— NÃO, NÃO e NÃO! — Foi a vez dela explodir os pulmões em um grito indignado. Ela então voltou a me olhar com os olhos pequenos e redondos dela me fitando como uma lunática, seus dedos afundando como garras nos meus ombros. Ela me olhou com aquele jeito doido que me fez encolher, seus olhos dardejando rapidamente, pensando em algo enquanto mordia o lábio inferior que parecia que ia tirar sangue, até que parou, se recompôs e olhou animada para mim novamente.

— Você aprendeu a lutar com seus irmãos, não aprendeu? Então, por favor, Serena, deixe-me ser sua irmã de coleta e escalada! Deixe-me lhe ensinar, aqui e agora, nessa montanha. Se você fosse uma menina qualquer, eu concordaria com você e treinaríamos com desafios mais fáceis, mas você, sem treinamento nenhum, quase que chega lá! — apontou para o platô que quase consegui chegar. — E nós vamos chegar lá! Só peço que faça tudo o que eu fizer e mandar, como se eu fosse Dounir ou Beladas, e lhe garanto! Vamos estar saboreando as maiores e mais suculentas ameixas de gelo que já viu na vida! O que me diz, hein, hein, hein? — disse novamente, com aqueles gritinhos de excitação típicos dela.

Eu estava olhando para ela com os olhos arregalados. Daí ela começou com aquela voz normal boba dela de novo e eu ri alto. Eu acreditava nela! Acreditava que eu e ela juntas poderíamos vencer essa e todas as montanhas. Estava disposta sim a confiar na experiência dela e seguir cada um de seus passos. Quando olhei para ela novamente, não pude deixar de notar que, para mim, ela havia se transformado. Ela não era mais aquela menina boba da voz fininha e engraçada. Quer dizer, ela ainda era, mas era algo mais. Passei a olhar para ela como eu olho os guerreiros de nossa tribo. Do seu jeito, Delsenora era uma guerreira.

— Sim! Quero vencer essa montanha boboca e me empanturrar de ameixas de gelo e juníperos bem grandes e gordos! E ainda quero encher essas cestas e trazer um montão para baixo! — falei animada, todas minhas forças recuperadas.

Delsenora riu alto soltando um teatral "é isso!" enquanto erguia as mãos para cima em comemoração. Ela começou a animadamente apagar a fogueira, e eu fui ajudar com as cestas, mas aí notei que havia três, a minha, a dela e uma outra nova.

— Por que tem uma cesta extra? — perguntei intrigada com aquilo.

Ela, ainda animada, deu uns pulinhos sobre os calcanhares e abanou a mão.

— Ah, isso, não se preocupe! Era para negociar com os selvagens no topo.

— Selvagens no topo? — interrompi, preocupada. Ela piscou e notou que eu queria mais explicações.

— Sim, quero dizer, entenda. O topo também é território de coleta deles, então estávamos levando essa cesta para negociar com eles. A gente dá a cesta, e eles nos guiam para os melhores arbustos e não tentam nos roubar enquanto dormimos no ponto de descanso. — Ela então sorriu desdenhosa e completou. — Mas não se preocupe! A essa hora eles já devem ter ido embora.

Fiquei pasma. Selvagens? Os mesmos selvagens que descem das montanhas, vestidos apenas de peles, quando não nus, que atacam nossas tribos com selvageria sem precedentes, com armas cruas e mortais, sem demonstrar nenhum medo, que dizem que comem carne humana, se banham de neve e montam mamutes? Esses selvagens? E elas estavam acostumadas a lidar com eles? Elas tinham mais coragem e fibra do que eu imaginava ao sentir a dificuldade da escalada, se isso fosse verdade.

— Espera aí, Delsenora, são os selvagens que ajudaram os gigantes na batalha do Portão da Ferida do Mundo? — perguntei, no que ela parou para pensar casualmente, revirando os olhinhos para cima e deu de ombros.

— É, devem ser. Nunca parei para perguntar. — E soltou um risinho sonoro e boboca.

— E se eles ainda estiverem lá? — perguntei, me empertigando, querendo parecer corajosa. Delsenora pensou e deu novamente de ombros.

— Se eles ainda estiverem lá... vamos lidar com isso juntas, não é? Nós somos uma dupla imparável agora! — e soluçou em risinhos.

— Delsenora, você é completamente louca! Seria uma ótima guerreira, só tem que parar com essa vozinha de esquilo!

Ela riu com aquela vozinha que nem um esquilo. Começamos então a escalar aquela montanha, ela mostrando como se fazia e eu prestando atenção e repetindo. A lição foi dura, porque não tínhamos muita luz e tínhamos que subir rápido, mas eu aprendo rápido, e juntas superamos aquela montanha metro a metro. Até chegarmos em seu topo acompanhadas pelos últimos raios do sol. Chegamos ao seu topo, excitadas e um pouco assustadas, mas chegamos. Conquistamos a montanha, mas os desafios que enfrentaríamos nela iriam apenas começar.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A Campeã da Estrela do Norte - Parte 05

5 A Vitória da Montanha


 


Lá estava eu, do lado de fora da minha cabana, aguardando pela Delsenora. Minha mãe me fez luvas reforçadas, um novo cachecol e conseguiu para mim botas de escalada, raquetes de neve, uma faca afiada e uma cesta de coleta. Eu parecia uma coletora boboca sentada sem fazer nada. Decidi que, quando Delsenora chegasse, não facilitaria para ela. Estava pensando nisso, quando o grupo do Balder passou para pegar Leif para os treinos e começaram a rir de mim.

    -“HAHAHA! A Dermin desistiu de vez de ser guerreira e virou uma coletora tonta!”  

Riam e apontavam para mim. Eu me encolhi, vermelha de raiva e vergonha. Balder também ria, mas foi ele quem mandou todos pararem, e foram embora com Leif.

Já estava desatando a cesta, prestes a desobedecer à minha mãe e abandonar tudo aquilo, quando Delsenora chegou, com um sorriso amigável, toda empacotada como eu. Não pude deixar de notar o nariz e os dentes da frente tortos dela, mas mesmo assim ela parecia feliz em me ver.

    -“Nossa, Serena! Mas você está linda!” - Ela falou, soltando uns solucinhos.

    -“Vamos logo com isso!” - Falei, levantando-me demonstrando pressa, sem olhar para o rosto dela, apenas fazendo cara brava.

    -“Tem razão! Como é seu primeiro dia, estava preparando as outras garotas para incorporá-la na expedição, por isso a demora. Ansiosa?” - Ela falou animada, o que já estava me irritando.

    -“Eu só quero que essa boboquice termine!” - Falei na cara dela. Ela deveria reagir com raiva, mas não, só sorriu e falou animada.

    -“Ah, mas até o final do dia você muda de ideia!” - E virou-se, ajeitando o cesto de coleta e liderou o caminho saltitando. Olhou para trás e disse - “Vamos!” - Com um sorriso bobo, e voltou a seguir o caminho.

Fui atrás dela, ainda mais indignada. Ela é tão fraca assim? Por que não reage às minhas provocações?

Então, apertei o passo e me emparelhei com ela, olhando para ela com um misto de raiva e deboche, então resolvi dizer.  

    -“Gostou da ‘janelinha’ que lhe dei?” - Falei com um sorriso malvado.  

    -“Janelinha?” Ela pausou e percebeu minha maldade, arregalando os olhos ofendida por um instante, mas depois relaxou de novo. - “A isso não foi nada, já me acostumei. Não tá tão feio assim!” - Dessa vez, fui eu quem arregalou os olhos em surpresa.

    -“E o nariz torto?” - Falei, com mais alarme na voz do que queria.

    -“Nem dá para notar direito, e até parece uma cicatriz de batalha, então é legal, não?” - O que eu estava ouvindo?

    -“NÃO, NÃO É!” - Respondi com indignação na voz. - “Você não é guerreira! Você é uma menina que vai achar difícil encontrar um homem por causa disso!”

    -“Difícil, mas não impossível! Já notou como Lachdag me olha?” - Ela me falou, ficando vesga de excitação e dando uma mordidinha no lábio.

    -“Não, não olhei! O que estou olhando é uma louca sendo gentil com a pessoa que a desfigurou!” - Falei com raiva e mostrando um pouco de remorso na voz, me arrependi na hora.

Ela parou, assentiu para mim com um sorriso moribundo e com lágrimas querendo descer dos olhos disse.

    -“Quer que eu diga que estou com raiva de você, Serena?”

    -“Sim!” - Cortei ela.  

    -“Então sim, estou com raiva de você!” - Ela falou, franzindo pela primeira vez o cenho. Não sei por que, mas aquilo cortou meu coração. - Mas amo demais sua mãe, que sempre foi muito gentil comigo, e sempre lhe admirei pela sua bravura, beleza e força e acho que, apesar de tudo, vai valer muito a pena ter você como amiga!” - Ela falou, chorando, e eu estava lacrimejando também, e nem notei. Ela deu uma fungada forte e limpou o narizinho com a manga da túnica. - “Agora vamos?” - Perguntou, tentando recuperar o sorriso.

    -“Me promete que se você estiver com raiva de mim, você vai demonstrar isso!” - Eu falei. Ela sorriu de verdade dessa vez e disse. - “Nossa primeira promessa!? Sim! Sim! Claro que prometo!” - E deu pulinhos animados.

    -“Para uma louca, você até que ficou parecendo uma guerreira mesmo!” - Falei para ela satisfeita, apontando para sua cicatriz.

    -“O que foi que te disse? E essa não é nem a primeira, olha só!” - E começou a me mostrar cicatrizes e calos nas mãos, braços e pernas que ela ganhou nas coletas. Aquilo me impressionou de verdade.

Finalmente, chegamos ao campo onde as outras garotas nos esperavam. Fazia sol, e havia várias poças d’água, e as garotas pareciam conversar preocupadas quanto à água. Eram cinco, eu conhecia algumas por cima, como a irmã de Delsenora, a Deirtha, outras duas tinha visto aqui e ali, as mais novas nunca tinha visto.

    -"Ahem!" - Delsenora as interrompeu com um pigarro. - "Meninas? Dêem boas-vindas à nossa sétima coletora!"

    -“Nossa, ela é linda!” - Falou uma das que eu não conheço com olhões grandes azuis e cabelos pretos e grossos amarrados em duas tranças.

Deirtha, que parece uma cópia da Delsenora, mas muito mais baixa apenas me deu um sorriso falso e mau acenou, diferente de Delsenora, ela tem muita mágoa de mim. Ignorei.

    -“Essa é Serena?” - Falou a outra de olhos puxados e castanhos e cabelo curto com uma única trança. - “Eu achava que era um menino!”

    -“Não sou nenhum menino! Sou Serena Dermin, a sétima coletora!” - Eu me empolgo muito fácil.

    -“Pois bem-vinda, Serena!” - Falou uma menina que era alta, mas não tão alta quanto Delsenora, mas era bem mais larga, tinha olhinhos de raposa como a mais nova, mas o cabelo era bem maior, preso em um rebuscado mais prático trançado. - “Eu sou Alanaira, a irmã mais velha da Astrainne, que pensava que você era um menino!”. - Falou Alanaira brincando com a irmã.  

    -“E eu pensava que você nem existia!” - Falou de novo a mais nova dos olhões. - “Me chamo Bláthnat, mas pode me chamar de Nat! - Ela falou com um sorrisão.  

    -"Bem-vinda, Serena! - Falou a loira dos olhos azuis, magrinha mais forte que não tinha dito nada. - Me chamo Tegan!" - Acenei para ela. - “Delsenora, que tal explicar para a novata como iremos fazer para chegar nos arbustos hoje? O caminho está cheio de gelo!” - Falou preocupada.

    -“Eu não temo o gelo!” - Falei com imprudência, batendo a mão no peito. Tegan só fez rir, fazendo pouco, e eu não gostei.

    -“Podemos usar o caminho mais longo, pelas trilhas do leste. Está fazendo um bom sol, e podemos parar no platô e descansar lá.” - Falou Delsenora com sabedoria.
    -“É melhor que você faça a pena valer esse atraso, novata!” - Tegan disse, com tom provocativo.

    -“Ei! Vai valer a pena sim!” - Disse indignada Bláthnat, que gosta de ser chamada de Nat. - “Já valeu!” - Completou.  

    -“Eu sei me defender! - Censurei Nat. “Se eu atrapalhar muito, vocês podem me deixar para trás, eu não me importo!” - Falei com certidão, e Tegan só deu uma risada feia.

    -“Só abre a boca para falar besteira, não é novata? Se você fica para trás você morre.” - Eu bufei de raiva, não gostei mesmo dessa Tegan. Mas Delsenora retomou o controle.

    -“Ninguém vai ficar para trás! Como sempre fizemos, vamos no tempo da nossa mais fraca!” - Delsenora falou, e aí me dei conta: Elas acham que EU sou a mais fraca? Ah não, vou mostrar para elas que não é bem assim, nenhuma menina vence Serena Dermin, pensei. Pensei errado.

Estava determinada a mostrar a todas elas que eu não seria nenhum peso morto ou estorvo, muito pelo contrário. Que os exercícios e treinos que faço diariamente me fizeram bem mais competentes que elas em qualquer atividade física. Delsenora estava repassando para mim algumas instruções de quem vai subir com quem, que eu não estava prestando muita atenção tamanha era minha concentração em vencer elas.  

    -“Serena? Serena você está me ouvindo?” - Perguntou ela.

    -“O pior fica atrás de todo mundo e as três melhores vão na frente, entendi!” - Respondi animada.

    -“Não é bem assim! Eu, Alanaira e Tegan vamos guiando pela frente, Nat, Astrainne e Deirtha vão atrás e você vai atrás coladinha com elas para aprender tudinho, entendeu agora?

    -“Astrainne e Deirtha são mais novas que eu!” -  Falei indignada.

    -“Mas são mais experientes, olha, aprende tudo direitinho e tenho certeza que logo logo você estará com a gente guiando o grupo, não é excitante!?” - Falou soluçando de expectativa.  

Eu não gostei.

Nem me dei conta e já estávamos subindo a montanha, quer dizer, dando uma volta nela. Notei que o chão estava mesmo escorregadio e já fui instintivamente escolhendo onde eu pisava para não escorregar e não perder velocidade, aprendi isso com meu irmão Beladas. Isso parece ter impressionado elas, mas elas pareciam já saber esse truque, o que me deixou um pouco ofendida.  

Finalmente chegamos na parte oriental e começamos a subir.

    -“Fiquem atentas desde já porque já dá para encontrar Uvinhas e bagas! Mais no alto vamos ter arandos vermelhos, mirtilos almiscarados, ameixas de gelo e junipeiros!” - Falou toda animada a Astrainne.  

    -“Não vamos perder mais tempo colhendo esses arbustos comidos pelos bodes! Já perdemos quase toda a manhã e nossa descida já será perigosa sem isso!” - Alertou Tegan.

    -“Então vamos dobrar nossa velocidade!” - Eu disse animada e apertei o passo. As meninas mais novas riram animadas da minha ousadia, Astrainne e Nat até apertaram o passo comigo tentando me acompanhar.  

    -“Esperem! Não se afastem muito! Serena, melhor relaxar, você vai precisar de todo seu folego!” - A Delsenora tentou me aconselhar, mas não dei ouvidos, aquela subida estava fácil, eu descansaria quando chegasse na primeira inclinação.  

Nat e Astrainne ficaram para trás, suplicando que eu não saísse de vista. Não sou nenhuma maluca, claro que eu tinha todas na minha vista, mas queria mostrar que posso fazer uma tarefa fácil como aquelas em menos tempo que elas e foi exatamente o que aconteceu. Em poucos minutos cheguei na primeira inclinação da montanha, quando me dei conta elas eram pouco mais que pontinhos ao longe. Acho que exagerei um pouco, mas já estava feito. Só precisava descansar, porque acabei me dando conta que me cansei mais do que deveria. Mas como? Já corri mais rápido que isso e por duas vezes a distância e não havia me cansado tanto! Achei que foi a preocupação de não me afastar muito delas. De qualquer jeito me sentei, ou melhor desabei e fiquei esperando pelas retardatárias.  

Tinha até cochilado um pouco quando elas chegaram, quase meia hora depois. Fiquei esperta e plantei um sorriso triunfante no rosto.

    -“Finalmente chegaram! Por que demoraram tanto?!” - Eu me gabava.

    -“Aí está a imprudente!” - Disse Tegan. Elas não pareciam estar felizes, más perdedoras.

    -“Serena, não faça mais isso! Não podemos nunca nos separar! E se surgissem lobos ou mesmo orcs para te pegar? Como iríamos lhe proteger?” - Falou Delsenora me censurando.

Eu corei e por um momento não soube responder, eu estava tão ocupada pensando em vencê-las que esqueci alguns dos cuidados básicos de sobrevivência.  

    -“Mas não aconteceu nada!” - Me gabei de novo fingindo confiança. - “Não vamos mais perder tempo e vamos subir isso!”

    -“Nada disso, senta aí, coloca a cabeça entre as pernas e respira fundo antes” - Alanaíra disse.  

    -“Colocar a cabeça entre as pernas? Acha que eu sou um ganso?” - Retruquei ofendida.

    -“Hahaha! Não, não é nada disso, você tá tonta Serena, você está oscilando como uma bêbada.” - Alanaíra falou se divertindo. E agora me zanguei.

    -“Nunca fiquei bêbada, e olha que já acompanhei meu irmão em bebedeira! Vamos logo nos preparar porque não podemos descer no escuro!” - Falei repetindo o que Tegan havia dito mais cedo e fui até as meninas que estavam com os equipamentos de escalada. As meninas acharam melhor não me provocar mais, mas Delsenora pediu que Nat e Astrainne pelo menos me fizessem beber muita água.

E assim escalamos a primeira inclinação. Era uma das mais difíceis, pelo menos foi para mim, decidi seguir o plano da Delsenora e ficar por último, mas aproveitei para estudar direitinho como as outras faziam, em especial as três melhores. Delsenora é 3 Nightals mais velha que eu e duas cabeças mais alta! Ela tem pernas longas e fortes como reparei bem naquele dia, apesar dos bracinhos finos. Já Alanaíra é a mais velha de todas, com 16 Nightals, só não sendo a líder por ser muito tímida. Ela tem o corpo mais largo e mais forte do grupo. Tegan é só um ou dois Nightals mais velha que eu e tem o corpo bem distribuído, apesar de eu achar que sou mais forte. Deirtha tinha a minha idade e era um palmo maior que eu, mais era fininha como a irmã, Delsenora. Nat e Astrainne eram dois ou três Nightals mais novas que eu e eram meninas, mas lá estavam na minha frente mandando em mim.  

A bem da verdade a escalada estava bem difícil, estava tendo muita dificuldade de respirar, e bastante tonta, a inclinação parecia muito pior do que era, às vezes eu parecia estar de cabeça para baixo! Será que eu estava doente? Já escalei muitos muros, árvores e barrancos na minha vida e nunca havia me sentido daquele jeito!

Com esforço consegui acompanhar as meninas até o primeiro platô. Elas já estavam todas se decidindo se deveriam usar a trilha estreita ou escalar logo mais oito metros até o próximo platô. Se eu quisesse mesmo ultrapassá-las, eu tinha que parar de fingir estar bem e me cuidar.

    -“Ih, olha! A Serena está imitando um ganso!” -  Astrainne me dedurou apontando para mim e rindo, todas começaram a rir.  

    -“Não é para colocar a cabeça na bunda, Serena, é nas pernas, deixa eu te mostrar!” - Alanaíra fez pouco de mim e me ensinou como eu deveria me recuperar da tontura, me disse para respirar fundo e olhar fixo para o horizonte. Também me deu de comer e beber. Me senti bem melhor.  

Comigo me sentindo melhor e todas mais aliviadas, elas voltaram a discutir as vantagens e desvantagens de seguir a trilha e a parede, achei melhor tomar a liderança e mostrar para elas quem era Serena Dermin e comecei a escalar sozinha.  

    -“Não, Serena, nãao!” - Gritou chorosa Delsenora ao notar que eu já estava na metade da parede. - “Pare aí, vamos subir para lhe apoiar!” Ela suplicou.  

    -“Já estou quase lá! Quando eu chegar, fixarei já as cordas para facilitar para todas! -  Me gabei, e com isso tinha que provar minhas palavras, e dobrei meus esforços. As garotas lá embaixo imploravam para que eu descesse ou parasse, isso só alimentava meu impulso de subir, e estava subindo rápido! Cinco metros, alonguei o pé para evitar o musgo e me impulsiono para cima. Seis metros, cravo forte uma estaca e amarro já um gancho para segurança. Sete metros, prendo a respiração e me puxo inteira usando um galho para mais alto. Oito metros, se eu me alavancar usando o galho como base, consigo impulso bastante para já agarrar o platô e....  agarro uma poça de gelo que não vi, perco o equilíbrio nos braços e caio.

O susto me fez buscar por fôlego, mas não veio ar bastante e fiquei tonta. Eu estava lutando para ficar acordada e não conseguia nem pensar em como parar minha queda, caí por quatro, cinco, seis metros quando a corda de segurança que eu prendi me para. Fico pendurada feito faisão sendo defumado e vomito tudo que comi. Eu estava morrendo de medo de cair, mas mal tinha forças para me manter acordada. Os gritos de desespero das outras meninas me pareciam abafados, como elas estivessem no fundo de um lago... ou estava eu no fundo de um lago?

De repente me senti flutuando? Ou será que voava? Não sabia na hora se eu caía ou se afundava.

Só sei que sentia apenas frio, meu corpo inundado de suor em suspensão no meio de ventos e fluxos. Fechei os olhos. A montanha me derrotou.

quarta-feira, 27 de março de 2024

A Campeã da estrela do Norte, parte 04

 4 Delsenora 


Eu não ia escrever esses próximos capítulos, ia pular direto para quando eu finalmente seria aceita novamente pelos meninos e começo minha jornada como guerreira de verdade, mas o Saeven insistiu em saber o que aconteceu comigo nos nightals que me afastei deles.


-    "Eu fiquei com as outras meninas." 

-    "Tá, mas isso não fez nenhuma diferença?" 

-    "Claro que fez!" 

-    "E fez como?" 

-    "Eu entendi que a vida das mulheres é tão perigosa quanto a dos homens!" 

-    "Isso me parece uma ótima história para se contar!" 

E foi assim que Saeven me convenceu a escrever essas partes. Então vou começar falando um pouco sobre minha primeira melhor amiga! 

***

Eu não gostava da Delsenora.  

Eu não gostava das meninas em geral, achava elas um tédio, que só faziam coisas chatas e falavam sobre coisas chatas. Mas a Delsenora era a pior delas, eu a achava enxerida, metida e grosseirona. 

Uma coisa importante que se deve entender da minha tribo é que apesar de sermos muitos, não nos metemos muito na vida dos outros. Claro, caçávamos juntos, coletávamos juntos, levantávamos nossas casas juntos e praticávamos nossos festivais e rituais juntos, mas a vida pessoal de cada família era pessoal. Uma família pode viver isolada do resto da tribo e ninguém saber nada dela além do que eles mostravam nas tarefas coletivas. E as crianças eram preciosas e bem cuidadas.   

Então eu não conhecia meninas porque eu só fazia o que os meus irmãos faziam, e eles não andavam com meninas, bom, só depois eles começaram a se interessar por elas, mas eu e Leif achávamos super nojento! Beijar uma menina? Blergh! 

Eu também não fazia questão de conhecer meninas, então eu não fazia esforço nenhum de vê-las, muito pelo contrário, eu me esforçava para evitá-las.  

Daí chegamos na parte de eu não gostar da Delsenora. Ela sempre teve muita curiosidade sobre mim. Sempre que me via acenava e tentava se aproximar, me forçando a me esconder ou sair correndo, nas festas e nos rituais ela procurava ficar perto de mim, me forçando a mudar de lugar e ir para o meio dos meninos, mesmo se fosse um grupo que eu não gostava, quanto mais nojentos fossem, menor era a chance dela me seguir. Parecia que ela fazia questão de passar perto da minha casa na volta das coletas, eu reclamei aos meus pais que ela invadia as nossas terras, meu pai mandava eu falar com minha mãe, eu falava com ela e ela não fazia nada! Então passei a me esconder sempre que ela aparecia, ou dava um jeito de não estar em casa. Teve duas vezes que eu fiquei com muito ódio dela. 

Uma das vezes foi quando eu estava no tear com a minha mãe. Eu estava distraída terminando o desenho de um urso enorme em cima de um lago, quando alguém começou a alisar e trançar meu cabelo. Eu não me incomodei, achando que era a minha mãe, até que uma vozinha disse: 

-    "Que cabelo bonito você tem!"

Estranhei aquela vozinha, parei meu trabalho e olhei para minha mãe. Ela estava do meu lado, me olhando como se eu fosse um filhote de urso bolando na neve, não era ela que mexia no meu cabelo, olhei para trás e lá estava ela, cabelos castanhos claros trançados, cara toda sardenta, olhos azuis apertados que pareciam uma raposa, aqueles dedos que pareciam galhos retorcidos trançando meu cabelo. Era a remelenta da Delsenora! "Como ela ousou me humilhar daquele jeito!?" Pensei. Então saltei em um pulo, derrubando até o tear e corri para dentro da casa gritando para ela sair de lá.  

-    "Eu não quis a assustar, juro!" - Ela falou enquanto ajudava minha mãe a colocar o tear de pé. 

-    "Eu sei que não querida, estava ficando muito bonita sua trança." 

-    "Mas não terminei! Ela é tão bonita, Sra. Dermin! Queria conhecê-la melhor!" - Falou ela com voz de choro. 

-    "Não se preocupe que eu termino. Mas fique tranquila, dê tempo a ela, ela não faz por mal. Não desista dela, por-favor!"

-    "Não desistirei!" 

Me lembro de ter pensado: "Por que minha mãe gostava dela? Pior ainda, por que ela queria me juntar com ela? Eu saindo com meninas? O que os meninos iam pensar de mim? Era aí que eles nunca mais iam querer me ver mesmo! Era assim que Balder nunca mais iria querer me ver!"   

A verdade era que os meninos nem pareciam sentir falta de mim, mas eu sentia a deles.  

***

Outra vez nevava muito e eu estava dentro da cabana cuidando de Leif enquanto minha mãe coletava galhos. Eu estava mostrando para Leif minha nova dança, a do urso escorregando no gelo. E ele inventava na hora a dança do salmão deslizando na lama, riamos muito quando Delsenora entrou, toda coberta por panos e carregando um fardo de galhos, ela parecia mais uma árvore morta coberta de neve.  

-    "O que vocês estão fazendo?" - Falou ela animada com um sorriso boboca, entrando e depositando o fardo no chão como se estivesse na própria casa. 

-    "NÃO É DE SEU INTERESSE, INVASORA! SAIA DAQUI!" -  Eu berrei 

-    "É! VÁ EMBORA SUA RANHENTA!" - Leif berrou comigo. 

-    "Calma! Só vim trazer galhos para vocês! A Sra. Dermin..." 

-    "EU NUNCA VOU SER SUA AMIGA, NUNCA!" - Eu berrei interrompendo-a, e depois me espichei toda mostrando toda minha altura e retesando meus músculos e rosnei alto como um Leão das Cavernas. Leif começou a imitar um urso. Ela perdeu o sorriso, bateu o pé no chão e disse. 

-    "Eu não tenho medo de cara feia!" 

Então eu e Leif começamos a jogar coisas nela. Ela nem tentava se defender, ficando parada como se não sentisse nada. Quando eu a acertei com uma pedra de amolar bem no nariz, ouvi o estalar da pedra na cara dela e muito sangue saindo. Ela desmoronou no mesmo instante. Ficando caída de braços abertos no chão, sangue empapando seu rosto e nariz aberto. Eu não conseguia tirar os olhos dela, ela não se movia.

-    "...Ela morreu? - Leif perguntou com medo na voz.

Não consegui responder, também estava com muito medo de ter matado a Delsenora, só conseguia ficar olhando para ela estirada, sangue molhando a terra batida da cabana. Meu coração batia forte, eu me sentindo fraca, fria e tonta.

Até que ela abriu os olhos, sujos de lágrimas e sangue, tossiu muito, pegou no rosto e gemeu. Se sentou no chão, olhando com olhos perdidos para mim. Seu branco dos olhos melado de sangue e lágrimas. 

Eu estava muito aliviada que ela estava viva, já tomava coragem para falar alguma coisa, esboçar algum tipo de ajuda quando ela tossiu mais, se levantou em um pulo e correu como se uma alcateia de lobos estivesse em seu encalço.

Me senti muito mal por isso, mas não fui pedir desculpas, não tinha coragem. Nem mesmo quando minha mãe me mandou. 

-    "Ela é uma menina muito boa, sabia? Não merece todo o desprezo que você sente por ela! Você foi muito estúpida fazendo isso, menina feia!" - Falou minha mãe com o rosto retorcido de mágoa, me doeu muito ver ela assim, merecia cada palavra por mais que doesse.  

-    "Obedeça a sua mãe!" - Meu pai me ordenou enquanto desnudava meu bumbum e me enchia de golpes com a bainha de sua espada. Depois me obrigou a ir para a casa dela, ainda com a bunda ardendo, com um fardo de peles como pedido de desculpas. O pai dela aceitou, mas ela nem saiu para me ver. 

Fiquei muito triste e arrependida, a verdade era que ela nunca fez nada de mal mesmo comigo, eu que era mesmo a estúpida feia, que achava que não ia me tornar guerreira se eu me aceitasse como menina e ela representava na minha cabeça tudo que era feminino. Esquecia que as guerreiras da Estrela do Norte que eu tanto queria ser, eram todas mulheres.  

Ela nunca mais veio me ver, o xamã fez tudo que podia, mas ela ficou com o nariz torto e uma cicatriz no meio do nariz. Então entendi que eu gostava dela sim. Sentia falta de me esconder dela, sentia falta das tentativas dela de me conhecer, sentia falta de ser elogiada por outra pessoa que não fosse de minha família. Nunca mais a vi. Até o dia em que ela veio me buscar para coletarmos na montanha.   

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A Campeã da estrela do Norte, parte 03

3 A Sombra da Montanha 



Não posso dizer muito sobre como foi a batalha que finalmente expulsou Feanurd do Lago Congelado, pois não participei dela. Eu só posso dizer que estávamos sem nenhuma esperança, a tribo parecia um fantasma de sí mesma, e algumas famílias começaram a debandar, achando que era o fim. Para piorar, o inverno foi muito difícil e havia pouca caça e coleta – todos diziam que era porque Elrem não mais nos protegia. Sem falar que Feanurd e seu bando nos perseguia e nos solapava. Se não fosse Elenira e suas guerreiras, não haveria ninguém para segurar a moral. Gweshen tentava, mas ninguém acreditava nela, nem em Themrim, até que em um dia, Themrim e Gweshen apareceram com essas armaduras de escamas, e Themrim disse que Elrem havia aparecido em sonho para ele e dito que estaria sempre protegendo a tribo da Grande Serpente. Como prova, deu a ele e a Gweshen aquelas armaduras de sua própria pele, que os protegeriam de todo o mal.  

Se foi mentira ou não, funcionou. Estávamos tão desesperados por alguma esperança que decidimos acreditar naquilo. Rapidamente a notícia se espalhou e começamos a nos reunir novamente.  

Elenira teve a ideia de levar toda a tribo para o Portão da Ferida do Mundo. Essa região se chama assim porque é um vale montanhoso que é muito bom no verão porque ele se enche de arbustos frutíferos e sem falar que dá acesso direto ao mar e aos civilizados do sul, como Portal de Bheorunna e Luskan. O ruim é que o verão lá é muito curto, e quando ele passa, o lugar é muito perigoso exatamente por conta dos worgs e dos gigantes. Mas Beladas me explicou por que era uma boa idéia: 

Se chegarmos lá, podemos colocar toda a tribo em segurança do outro lado do vale e chamar Feanurd para lutar em um passe facilmente fortificável. Ele estando tão perto de casa vai preferir fugir a ficar e lutar. 

Apesar de Gweshen não gostar de Elenira, ela entendeu a ideia e foi para lá que fomos.  

Não ví a luta, estava cuidando de Leif que tinha ficado doente, e não podia ver nem se eu quisesse. Mas soube por todos que meu irmão Dounir foi muito importante na expulsão de Feanurd. Nós conseguimos tombar três gigantes e vários worgs. Sofremos muito, mas conseguimos.  

Depois ele Beladas e meu pai marcharam ao lado de Gweshen para punir os assassinos de Elrem e Bardawulf. No fim, os traiçoeiros Corvos Negros haviam dito para um grupo de invasores do sul que Elrem estava desprotegido. Esses invasores mataram Elrem e emboscaram Bardawulf antes dele ter a chance de chegar no conselho com os Corvos Negros.   

A vingança contra os invasores e contra os Corvos Negros foi menos perigosa do que a luta contra Feanurd. Vínhamos com vingança, vínhamos com ódio, vínhamos achando que nada poderia nos derrotar, pois havíamos acabado de derrotar gigantes. Mas a verdade é que os Corvos Negros não queriam lutar e foram perdoados por Gweshen sob a condição deles nos ajudarem contra os invasores e pagarem em madeira, comida, peles e todos os prejuízos que fizeram.  

Os invasores só queriam mesmo roubar o tesouro de Elrem e fugiram assim que viram os Corvos Negros e a Grande Serpente unidos contra eles.  

Matamos muitos enquanto eles fugiam, e os Corvos honraram sua palavra no final.  

As lutas demoraram quase um ano, e sofremos, nos dividimos e quase acabamos nesse tempo. Mas sobrevivemos e conseguimos superar nossos inimigos no final. Mas então, quando as lutas acabaram, Gweshen Mão de Ferro expulsa as Guerreiras da Estrela do Norte da tribo e Elenira aceita a decisão sem reclamar, eu tinha 12 Nightals quando isso aconteceu e me lembro de ter ficado com muita raiva de Gweshen por isso. Elenira e as guerreiras haviam feito muito por nós e eu não estava sozinha na minha raiva, vários também acharam uma injustiça.  

-    É injusto, mas foi melhor assim. - Minha mãe me disse certa vez.  

-    Por quê? Elas deram seu sangue, seu suor e suas vidas para nós ajudaram, estavam conosco lado a lado, escudo a escudo em todas nossas batalhas e Gweshen as traí desse jeito só porque o pai dela gostava de Elenira? Isso não faz nenhum sentido para mim! - Eu falei com o sentimento de raiva apaixonada. Eu admirava muito Elenira e as Guerreiras de Gwynharwyf, ainda admiro.  

-    Não fale assim de nossa chefe, Serena! Imagine se seu pai me trocasse pela Lorna ou pela Pelah, você ia ficar feliz? - Lorna e Pelah eram duas mulheres que gostavam do meu pai antes mesmo de eu ter nascido. Quando meu pai voltou das batalhas, a Pelah chegou a jogar uma guirlanda de visgo para meu pai pisar, minha mãe olhou furiosa para ela e ela saiu correndo. 

-    Meu pai nunca lhe trocaria por aquela bruxa ranhenta! E a mãe de Gweshen está morta! - Comentei. Não sei se Pelah é bruxa, mas ela nunca se casou e mora isolada fazendo roupas e cestos para sobreviver.   

-    Se eu morresse você se esqueceria de mim? 

-    Claro que não! 

-    Nossa senhora não esqueceu a mãe dela também e sofre com a ideia de que seu pai a tenha esquecido. 

Não sabia o que responder. Então fiz uma cara feia. 

-    Isso não vai durar para sempre, minha guerrerinha. Um dia em breve Gweshen irá superar seu luto e perdoar Elenira e as outras.  

Minha mãe só não contava com o orgulho de Gweshen. 

É claro que enquanto tudo isso acontecia, não houveram mais jogos de Senhores de Guerra, mas então com o fim das batalhas e a volta da normalidade, a trégua acabou.   

Dounir não participava mais do jogo pois tinha 17 Nightals e era um guerreiro, Beladas, com 16 anos, já um guerreiro também, só participou mais algumas vezes, as últimas vezes por nossa insistência, mas acabou parando, só sobraram eu e Leif de Dermin no jogo.  

Como eu não conseguia atrair ninguém para liderar porque ninguém ainda me levava a sério e nem Leif, porque ele ainda era pequeno, o grupo Dermin acabou e permaneceu assim por dois anos. Porém os territórios os territórios ainda eram Dermin, e era necessário pedir permissão para um Dermin para usá-los.  

 Como Dounir e Beladas tinham deixado os territórios para mim e Leif, os outros grupos tinham que pedir permissão para nós para usar o forte ou a caverna. Então, um garoto de 14 Nightals chamado Balder que liderava o grupo do Machado de Guerra vinha pedir permissão para Leif para usar o forte do toco velho. Em troca, Leif entrava no grupo dele e não fazia nada a não ser “cuidar da bandeira”.  

O grupo do Balder era o mais forte de todos e ele era um dos meninos mais velhos que ainda brincavam de território mas ele não me chamava, porque eu era menina, porque ele tinha medo de me machucar, porque ele me achava delicada demais para aquilo. Eu achava muito injusto, porque eu fazia questão de arrumar o forte do toco velho, eu trocava as madeiras velhas e entalhava as escadas, eu refazia as amarras e ensinava ao Leif a fazer o mesmo. Com ajuda de Beladas, eu fazia o mesmo na caverna do lago congelado – mas não, eu era muito delicada para lutar.   

 Depois de um tempo impedida de jogar, cansei disso e fui confrontar Balder, ele e seu grupo estavam combinando com o outro grupo as regras do jogo daquela tarde. 

-    Balder! Quero que vocês saiam daqui, pois eu e Leif vamos tirar o gelo da escadaria do forte! 

-    Não precisa não, mulher! Um gelinho não vai atrapalhar ninguém. -  Ele falou isso sem nem olhar para mim.  

-    Nunca ouvi tanta bobagem junta! - Eu respondi rindo. - Pessoas podem morrer se escorregarem e caírem no gelo! 

-    Meninas bobas e atrapalhadas podem morrer se caírem e escorregarem no gelo! - Ele respondeu e seu grupo riu de mim.  

-    Eu como uma Dermin não permito que vocês usem o forte do toco velho! - Falei vermelha de raiva e bem alto.  

-    Balder me olhou muito contrariado, como se estivesse decepcionado ou confuso, eu nunca soube ler direito a cara dele porque ele fica todo bobo na minha frente. Mas finalmente ele parou de gaguejar e perguntou para Leif. 

-    Leif, você é do meu grupo, não é? 

-    S-sim! - Leif respondeu com vergonha de olhar para mim. 

-    Você como um Dermin permite que usemos o forte? 

-    Sim. - Respondeu meu irmãozinho ainda sem coragem de olhar nos meus olhos indignados. Derrotada eu supliquei. 

-    Deixe-me entrar para seu grupo!  

Ele olhou para os outros que estavam rindo de mim e balançou a cabeça numa negativa. 

-    Responda com palavras, seu covarde! - Falei já com os olhos marejados. Ele me olhou com fúria e gritou. 

-    NÃO mulher, vá embora!  

Desesperada para brincar participar e não sair humilhada apelei para o outro grupo. 

-    Couldourn... Ele não me deixou nem começar. 

-    Não precisamos de meninas choronas e remelentas para nos atrapalhar! 

E todos riram, não aguentei e comecei a chorar muito e saí correndo para esconder a vergonha, eles riram mais alto. Anos depois Leif disse que também riram dele porque ele chorou por mim, Blader disse mais tarde que se envergonhou muito de ter feito aquilo comigo, mas não podia mostrar isso para os outros.  

Eu não era uma jogadora ruim, todos eles sabiam disso. Eu havia treinado luta com os mais fortes jogadores, Dounir, Kant e Beladas e costumava vencer muitos meninos, inclusive Balder e Couldourn com força e esperteza, e os meninos odiavam perder para mim, por isso estavam sendo agora cruéis comigo. 

Cheguei em nossa cabana e minha mãe me viu vermelha e ficou tão preocupada que largou a urdidura e o pente no chão e foi me ver. 

-    O que aconteceu, minha guerrerinha? - Ela falou enquanto me examinava em busca de ferimentos. Fiquei envergonhada em ter deixado ela assim tão preocupada, mas não conseguia conter a tristeza. 

-    Os meninos mãe! Eles não me querem jogando com eles! Isso é injusto porque eu sou muito boa e sou a única que desenterra o forte da neve quando migramos para cá! 

-    Quer tanto assim brincar com os meninos? - Minha mãe me perguntou depois de me consolar por um tempo. 

-    O que mais eu posso fazer? Perguntei desolada. 

-    Você pode me ajudar mais vezes com a tecelagem, tenho certeza que seu pai ficaria orgulhoso. Até Dounir me ajudou um dia desses na tecelagem. - Dounir tinha matado um gigantesco worg* nas batalhas e queria fazer uma capa para ele com a pele do bicho. Ele até me deu de presente uma faixa de peito com o que sobrou.  

-    Sempre que você me pedir eu vou lhe ajudar, mãe, mas você disse que aquele que nega seu destino se torna um fantasma em vida. E estou destinada a ser uma guerreira! - Eu disse com toda verdade que eu pudesse carregar em minha voz. Minha mãe até se emocionou, me abraçou e ficamos assim por um tempo. 

-    Hoje Delsenora esteve por aqui, é bem a terceira vez que ela pergunta por você, ela subia a montanha com as outras meninas para colher frutos dos arbustos de lá. Porque não anda com as outras meninas? - Delsenora era uma garota alta e magra, da idade de meu irmão mais velho. 

-    Meninas são bobas! - Falei cheia de mágoa. - Porque diz isso, mamãe? Como andando com meninas vou me tornar uma guerreira? - Minha mãe riu alto, o que só aumentou minha raiva e frustração, mas depois ela me acalmou. 

-    É isso que os meninos pensam de você, que você é boba por ser menina, mas você não é nenhuma boba. E quem disse que andar com meninas desviaria o teu caminho? Não são as Guerreiras da Estrela do Norte meninas? Você terá que andar com elas! E além do mais, subir montanhas é um feito impressionante de força, perseverança e resistência, algo que deve ser feito desafiando de frente a morte e sentir o júbilo de vencê-la de frente. Não é isso que guerreiros fazem?  

-    É, mas não sei escalar... - Falei confusa e admirada, já escalei árvores, pedregulhos e muros, mas nunca uma montanha, com suas paredes que parecem sumir nas nuvens, seria mesmo verdade tudo aquilo? Escalar era assim um desafio?  

-    Pronto menina, vamos fazer o seguinte. Vou falar com Delsenora amanhã para que ela lhe leve na próxima expedição de coleta, você irá esquecer dos meninos enquanto estiver com as garotas! Agora me ajude a terminar na tecelagem que depois eu e você vamos ficar arremessando lanças até não haver mais luz no céu, combinado? 

-    Combinado! - Minha mãe era uma ótima arremessadora, e eu tenho orgulho de dizer que me tornei boa nisso por conta dela.  

Terminei de ajudar minha mãe na tecelagem e como ela prometeu, arremessamos lanças no tempo que sobrou, até esqueci do dia horrível que tive. No dia seguinte minha mãe me chamou para ir até os Brunn, a família de Delsenora, mas eu queria ficar para ver se os meninos me chamavam.  

-    Guerrerinha! Venha, será bom para você! - Minha mãe insitiu, não falei nada, fiquei apenas fitando a passagem que leva para o forte com esperança de que alguém aparecesse de lá para me chamar.

-    Bom, pelo menos coma logo sua sopa, não deixe esfriar.  

Minha mãe ficou parada um tempo, mas desistiu e foi sozinha. E eu fiquei por um tempo esperando pelos meninos. Vieram, Couldourn e seus capachos, chamaram o Leif e me olharam com chacota nos olhos. Queria partir para cima do pescoço de Couldourn, mas meu pai chegava da reunião com os demais clãs com meus irmãos e corri para eles no lugar afim de humilhá-los a treinar com meus irmãos no lugar.  

-    Dounir! Beladas! Papai! - gritei para eles e para Couldourn ouvir. - Vamos treinar com espadas agora? Já consigo golpear o vento daquelas três formas por cima até fazer barulho! Agora tenho que aprender os outros golpes!  

-    Meus irmãos se entreolharam divertidos enquanto lutavam para manter sob os ombros grandes pedaços de carne que trouxeram da reunião. Meu pai me pegou no colo em um único movimento pela bunda, o que fez subir meu vestido e expor minhas pernas para os meninos verem e fiquei vermelha de vergonha.  

-    O que é isso pequenina? Não vai dar um beijo no seu pai? - E ele empurrou a barba dele na minha cara. Não era pequena, eu já era alta e forte para uma menina de 12 nightals, mas ele não se importava, me jogou para o ar umas duas vezes me embaraçando ainda mais na frente de Couldourn. Já conseguia ouvir a risada deles.  

-    E vocês meninos, que fazem por aqui? Perguntou meu pai para Couldourn. 

-    Viemos apenas chamar Leif para jogar conosco, Senhor Dermin. - Falaram com medo palpável na voz.  

-    Pois vão, apenas lembrem-se que não podem mais se demorar como costumavam! 

-    O senhor vai treinar com Serena? Podemos ficar e olhar? - Perguntou Jan, um dos capachos de Couldourn. 

-    Ah não! Temos trabalho para fazer! Vamos conservar esta carne e minha pequena irá deixar a cabana quente. Ela não tem nada que treinar, eu a protejo! - E soltou um riso trovejante. Ele estava feliz pelo resultado do butim que ficou para ele dos assassinos que pegamos no verão passado, mas as palavras dele só aumentavam minha humilhação. 

-    E lá fui eu, sem escolha e humilhada aquecer a cabana para que meu pai e meus irmãos pudessem trabalhar nos montões de carne. Meu pai notou minha tristeza e até tentou me encorajar a ajudá-lo na preparação da carne, ele sabe que eu quero ser guerreira, mas finge que não. Para ele, se eu tiver que pegar em uma arma ele falhou como pai e protetor. Meus irmãos não compartilhavam da mesma ideia e me encorajavam a isso sempre que podiam. Quando pode, Dounir foi até mim e prometeu treinar comigo mais tarde enquanto Beladas distraia meu pai. Isso me deixou feliz. Com uma desculpa de ir amolar as facas e precisar de mim para carregar as pedras, meu irmão saiu comigo para treinarmos um pouco escondidos debaixo da escarpa.  

No dia seguinte, minha mãe voltou. Ela cumpriu sua palavra e falou com Delsenora sobre mim. Ela me disse que Delsenora ficou muito feliz, e que iria me preparar para a próxima expedição. Fiquei ofendida, como a Delsenora que nunca lutou ia me preparar para qualquer coisa? E mais, se os meninos não quisessem me chamar, eu poderia ter meu irmão para treinar, isso não era melhor para mim do que subir uma montanha velha e colher frutinhas? Mas minha mãe já havia dado sua palavra, e eu não podia humilhar ela, eu nunca faria isso. Me resignei e fiquei a encarar as montanhas. Quão pequena me sentia à sombra delas! 

 * Worg: Grande criatura semelhante a um lobo, mas com o tamanho de um cavalo e com uma inteligência quase humana. Essas criaturas são conhecidas pela sua crueldade e alianças com gigantes e orcs.