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quarta-feira, 27 de março de 2024

A Campeã da estrela do Norte, parte 04

 4 Delsenora 


Eu não ia escrever esses próximos capítulos, ia pular direto para quando eu finalmente seria aceita novamente pelos meninos e começo minha jornada como guerreira de verdade, mas o Saeven insistiu em saber o que aconteceu comigo nos nightals que me afastei deles.


-    "Eu fiquei com as outras meninas." 

-    "Tá, mas isso não fez nenhuma diferença?" 

-    "Claro que fez!" 

-    "E fez como?" 

-    "Eu entendi que a vida das mulheres é tão perigosa quanto a dos homens!" 

-    "Isso me parece uma ótima história para se contar!" 

E foi assim que Saeven me convenceu a escrever essas partes. Então vou começar falando um pouco sobre minha primeira melhor amiga! 

***

Eu não gostava da Delsenora.  

Eu não gostava das meninas em geral, achava elas um tédio, que só faziam coisas chatas e falavam sobre coisas chatas. Mas a Delsenora era a pior delas, eu a achava enxerida, metida e grosseirona. 

Uma coisa importante que se deve entender da minha tribo é que apesar de sermos muitos, não nos metemos muito na vida dos outros. Claro, caçávamos juntos, coletávamos juntos, levantávamos nossas casas juntos e praticávamos nossos festivais e rituais juntos, mas a vida pessoal de cada família era pessoal. Uma família pode viver isolada do resto da tribo e ninguém saber nada dela além do que eles mostravam nas tarefas coletivas. E as crianças eram preciosas e bem cuidadas.   

Então eu não conhecia meninas porque eu só fazia o que os meus irmãos faziam, e eles não andavam com meninas, bom, só depois eles começaram a se interessar por elas, mas eu e Leif achávamos super nojento! Beijar uma menina? Blergh! 

Eu também não fazia questão de conhecer meninas, então eu não fazia esforço nenhum de vê-las, muito pelo contrário, eu me esforçava para evitá-las.  

Daí chegamos na parte de eu não gostar da Delsenora. Ela sempre teve muita curiosidade sobre mim. Sempre que me via acenava e tentava se aproximar, me forçando a me esconder ou sair correndo, nas festas e nos rituais ela procurava ficar perto de mim, me forçando a mudar de lugar e ir para o meio dos meninos, mesmo se fosse um grupo que eu não gostava, quanto mais nojentos fossem, menor era a chance dela me seguir. Parecia que ela fazia questão de passar perto da minha casa na volta das coletas, eu reclamei aos meus pais que ela invadia as nossas terras, meu pai mandava eu falar com minha mãe, eu falava com ela e ela não fazia nada! Então passei a me esconder sempre que ela aparecia, ou dava um jeito de não estar em casa. Teve duas vezes que eu fiquei com muito ódio dela. 

Uma das vezes foi quando eu estava no tear com a minha mãe. Eu estava distraída terminando o desenho de um urso enorme em cima de um lago, quando alguém começou a alisar e trançar meu cabelo. Eu não me incomodei, achando que era a minha mãe, até que uma vozinha disse: 

-    "Que cabelo bonito você tem!"

Estranhei aquela vozinha, parei meu trabalho e olhei para minha mãe. Ela estava do meu lado, me olhando como se eu fosse um filhote de urso bolando na neve, não era ela que mexia no meu cabelo, olhei para trás e lá estava ela, cabelos castanhos claros trançados, cara toda sardenta, olhos azuis apertados que pareciam uma raposa, aqueles dedos que pareciam galhos retorcidos trançando meu cabelo. Era a remelenta da Delsenora! "Como ela ousou me humilhar daquele jeito!?" Pensei. Então saltei em um pulo, derrubando até o tear e corri para dentro da casa gritando para ela sair de lá.  

-    "Eu não quis a assustar, juro!" - Ela falou enquanto ajudava minha mãe a colocar o tear de pé. 

-    "Eu sei que não querida, estava ficando muito bonita sua trança." 

-    "Mas não terminei! Ela é tão bonita, Sra. Dermin! Queria conhecê-la melhor!" - Falou ela com voz de choro. 

-    "Não se preocupe que eu termino. Mas fique tranquila, dê tempo a ela, ela não faz por mal. Não desista dela, por-favor!"

-    "Não desistirei!" 

Me lembro de ter pensado: "Por que minha mãe gostava dela? Pior ainda, por que ela queria me juntar com ela? Eu saindo com meninas? O que os meninos iam pensar de mim? Era aí que eles nunca mais iam querer me ver mesmo! Era assim que Balder nunca mais iria querer me ver!"   

A verdade era que os meninos nem pareciam sentir falta de mim, mas eu sentia a deles.  

***

Outra vez nevava muito e eu estava dentro da cabana cuidando de Leif enquanto minha mãe coletava galhos. Eu estava mostrando para Leif minha nova dança, a do urso escorregando no gelo. E ele inventava na hora a dança do salmão deslizando na lama, riamos muito quando Delsenora entrou, toda coberta por panos e carregando um fardo de galhos, ela parecia mais uma árvore morta coberta de neve.  

-    "O que vocês estão fazendo?" - Falou ela animada com um sorriso boboca, entrando e depositando o fardo no chão como se estivesse na própria casa. 

-    "NÃO É DE SEU INTERESSE, INVASORA! SAIA DAQUI!" -  Eu berrei 

-    "É! VÁ EMBORA SUA RANHENTA!" - Leif berrou comigo. 

-    "Calma! Só vim trazer galhos para vocês! A Sra. Dermin..." 

-    "EU NUNCA VOU SER SUA AMIGA, NUNCA!" - Eu berrei interrompendo-a, e depois me espichei toda mostrando toda minha altura e retesando meus músculos e rosnei alto como um Leão das Cavernas. Leif começou a imitar um urso. Ela perdeu o sorriso, bateu o pé no chão e disse. 

-    "Eu não tenho medo de cara feia!" 

Então eu e Leif começamos a jogar coisas nela. Ela nem tentava se defender, ficando parada como se não sentisse nada. Quando eu a acertei com uma pedra de amolar bem no nariz, ouvi o estalar da pedra na cara dela e muito sangue saindo. Ela desmoronou no mesmo instante. Ficando caída de braços abertos no chão, sangue empapando seu rosto e nariz aberto. Eu não conseguia tirar os olhos dela, ela não se movia.

-    "...Ela morreu? - Leif perguntou com medo na voz.

Não consegui responder, também estava com muito medo de ter matado a Delsenora, só conseguia ficar olhando para ela estirada, sangue molhando a terra batida da cabana. Meu coração batia forte, eu me sentindo fraca, fria e tonta.

Até que ela abriu os olhos, sujos de lágrimas e sangue, tossiu muito, pegou no rosto e gemeu. Se sentou no chão, olhando com olhos perdidos para mim. Seu branco dos olhos melado de sangue e lágrimas. 

Eu estava muito aliviada que ela estava viva, já tomava coragem para falar alguma coisa, esboçar algum tipo de ajuda quando ela tossiu mais, se levantou em um pulo e correu como se uma alcateia de lobos estivesse em seu encalço.

Me senti muito mal por isso, mas não fui pedir desculpas, não tinha coragem. Nem mesmo quando minha mãe me mandou. 

-    "Ela é uma menina muito boa, sabia? Não merece todo o desprezo que você sente por ela! Você foi muito estúpida fazendo isso, menina feia!" - Falou minha mãe com o rosto retorcido de mágoa, me doeu muito ver ela assim, merecia cada palavra por mais que doesse.  

-    "Obedeça a sua mãe!" - Meu pai me ordenou enquanto desnudava meu bumbum e me enchia de golpes com a bainha de sua espada. Depois me obrigou a ir para a casa dela, ainda com a bunda ardendo, com um fardo de peles como pedido de desculpas. O pai dela aceitou, mas ela nem saiu para me ver. 

Fiquei muito triste e arrependida, a verdade era que ela nunca fez nada de mal mesmo comigo, eu que era mesmo a estúpida feia, que achava que não ia me tornar guerreira se eu me aceitasse como menina e ela representava na minha cabeça tudo que era feminino. Esquecia que as guerreiras da Estrela do Norte que eu tanto queria ser, eram todas mulheres.  

Ela nunca mais veio me ver, o xamã fez tudo que podia, mas ela ficou com o nariz torto e uma cicatriz no meio do nariz. Então entendi que eu gostava dela sim. Sentia falta de me esconder dela, sentia falta das tentativas dela de me conhecer, sentia falta de ser elogiada por outra pessoa que não fosse de minha família. Nunca mais a vi. Até o dia em que ela veio me buscar para coletarmos na montanha.   

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