Não havia mais tempo para se perder, então Mizumi, Konichi e Mayuki se despedem de Obayuki, Wisengashi e os pequenos. Wisengashi iria retornar para Haddan, onde torceria pelo sucesso de sua filha adotiva enquanto Obayuki auxiliaria os samurais caídos.
Mayuki estava surpresa com Mizumi, era a primeira vez que a garota usava maquiagem de maiko¹, mas se adaptou muito rápido e já não demonstra nenhum sinal de irritação.
Ouviam os apitos dos doshins à distância, então concluíram que não tardaria que a trilha de homens caídos levarem eles até o pátio. Decidiram tomar então o caminho mais rápido para as ruínas do castelo, se mantendo às sombras para chamar menos atenção. O fato de que as ruas estavam vazias devido ao toque de recolher não ajudava.
O caminho do castelo à àquela altura ia de paralelo a vila, ladeada por uma parede de rocha natural de um lado e altas estacas de madeira do outro. Já estavam no meio do caminho quando ouviram passos à frente de pelo menos meia dúzia de pessoas, Konichi e Mayuki começam a entrar em pânico. Não são samurais, são? Vieram seis com Keitarô e Mizumi derrubou todos eles. Então só poderiam ser os doshins. Os homens do magistrado são sua gente, alguns deles são amigos de jogos e vadiagem de Konichi, um par de outros já se envolveram num inocente namoro de verão com Mayuki, todos eles passaram pelas mãos de Obayuki ao nascer, eles não fariam realmente mal a eles, fariam? Era melhor não esperar para ver.
- Devemos dar meia volta, nos escondermos e deixar eles passarem. – Disse Konichi. Mayuki aquiesce concordando, mas Mizumi tem outra opinião.
- Não chegaríamos na próxima esquina há tempo, e mesmo assim, se fossemos pegos dando meia-volta, seria pior.
- Que faremos então? Se algum samurai estiver os acompanhando? – Pergunta Mayuki com a voz trêmula.
- Como disse, é pior se dermos meia volta, vamos subir e torcer que sejam apenas doshins, eles não serão hostis a vocês, eu tenho certeza. Se houver samurais eu lido com eles.
- Você sozinha? - Mayuki já ia protestar, mas sabe que ela é capaz, e sabe que ela tem razão, não conseguiriam dar meia-volta a tempo, os homens a frente deles já os notaram e assopravam seus apitos. Ela só espera que não termine em violência.
Os três fazem o melhor que podem para parecer casuais, o medalhão de Mayuki, o netsuki³ em forma de sapo que Wisengashi encantou, a ajuda na sua compostura, mas é possível se notar o nervosismo de Konichi o observando atentamente, já Mizumi apenas coloca sua wagasa4 de forma a esconder seus olhos na sombra e segue atrás dos dois.
Chega um grupo de nove pessoas, na maioria homens e um trio de mulheres, todos eles armados com longas varas de madeira que terminam em ganchos de ferro com exceção do líder, um homem franzino mais forte, usando um kasa5 de couro com o símbolo “hanji”6 costurado a ele, em sua mão ele carrega apenas um curto bastão de metal com duas pontas conhecido como jitte7. Seu nome é Higoi Sui, magistrado da cidade.
Quando o magistrado avista o trio tentando não chamar atenção enquanto andam às sombras, ele faz um gesto para que seu grupo pare e interpela os viajantes.
- Konichi-san! – Ouvir seu nome saindo com tamanha autoridade de seu amigo, fez Konichi travar por um momento – Uma palavra, por favor.
Obediente Konichi se aproxima um pouco dos doshins que estão em alerta olhando para o grupo.
- Hai, Higoi-sama! Como posso ajudá-lo? – Pergunta Konichi tentando parecer tranquilo, seu medalhão, o pedaço de tecido que ele usa para amarrar o cabelo, começa a ter efeito e ele se sente mais confortável com suas palavras.
- Compreende que estão violando o toque de recolher e que vocês deveriam estar trancados em suas casas, não é? O que fazem nas ruas? – Sui pergunta num tom casual, mas autoritário.
- Foi até bom encontrá-los, Higoi-sama, toda essa comoção na vila fez mal a Obayuki-okasan8 e ela agora está passando muito mal. E estamos subindo para buscar ajuda.
Ao ouvir isso, Sui parece realmente consternado. – E precisava ir todos vocês para isso? Mayuki-san deveria ter ficado ao lado dela! Vamos então homem! Não vamos perder mais tempo.
Konichi se surpreende que sua mentira funcionou tão bem e retruca. – Mas Sui-sama, o senhor está ocupado com toda essa perseguição àquela fugitiva, por-favor, não se incomode conosco e continue seguindo com seu dever, estou certo de que encontraremos ajuda no castelo.
-Nada disso. – Responde Sui – É meu dever cuidar da população, essa busca pode esperar, vamos todos para lá onde meu pessoal pode levá-la em segurança para o escritório.
Mayumi decide intervir. – Nos sentiríamos muito mal se isso desviasse o senhor de seu caminho, Higoi-sama! Você sabe como é Okasan, foi ideia dela nos mandar, e você sabe como ela é teimosa.
Ainda preocupado, Sui pensa um pouco enquanto fita Mayuki, neste momento, a jovem desconhecida maiko chama atenção do magistrado.
-E quem é a garota?
- Ela? É minha prima, chegou de Orimaki ontem pela... digo, a dois dias atrás... – Fala um tanto vacilante Mayuki.
Higoi Sui capta o vacilo de Mayuki e começa a achar a curiosa procissão suspeita. Porque se arrumarem tão bem para buscar ajuda para Obayuki, e quem é a garota?
- Garota! Pode baixar sua sombrinha e mostrar seus papeis por favor? – Sui pergunta com autoridade enquanto gesticula para que Mizumi se aproxime.
Konichi e Mayuki tentam desconversar, mas são silenciados quando Mizumi simplesmente obedece, seus protestos silenciosos são em vão. A garota vai até o magistrado enquanto baixa a sombrinha, quando chega a cinco passos dele ergue a cabeça revelando seu rosto.
Higoi Sui se surpreende, ela pode estar maquiada e vestida como uma maiko, mas a cor dos olhos e forma do corpo não deixam muitas dúvidas para o magistrado, ele está diante da fugitiva.
- Diga seu nome. Sui pergunta secamente, esperando para ver o que a garota irá inventar.
- Mizumi. Responde sem pestanejar a garota.
Por um momento Sui fica sem reação, a garota não demonstra medo nenhum, o fitando diretamente nos olhos, como iguais. Por um momento é Sui quem baixa os olhos, pois ele ouviu as histórias e sabe quem ela é, a altivez no olhar não deixou dúvidas, ela é a Pequena Dama. Sui suspira e grunhe com raiva de seu breve gesto de respeito, e volta a fitar a ronin.
- Mizumi, o que faz com essas pessoas? Pergunta finalmente o magistrado.
- Eles são meus reféns, os capturei no pátio de Kemari9, onde estão quatro samurais gravemente feridos caídos. Há mais dois na rua mais abaixo, na interseção do antigo mercado.
Ao ouvirem isso, os doshins ficam pasmos, não acreditando na frieza e na capacidade de luta daquela pequena e enfeitada mulher. Alguns se preparam, prontos para a ação, mas a ronin não demonstra intenções violentas.
Boa garota, Sui pensa, ao dizer que Konichi e Mayuki são seus reféns na frente de tantas testemunhas ela os isentou de qualquer culpa de cumplicidade. Ela também indicou onde estão os feridos, o que se faz necessário que eu mande meu grupo para socorrê-los. Mesmo assim é bom tomar cuidado.
-Sabe por que está sendo procurada? - Pergunta Sui sério, pronto para qualquer coisa, ele quer acreditar nas boas intenções da moça, mesmo assim, não sabe o que ela se tornou ao longo do tempo.
Mizumi dá de ombros. – Me acusam de traição, juntamente com muitos samurais desta cidade, já vi alguns sendo executados, isso é muito triste. Tudo que eles fizeram foi defender esta cidade, e tudo que fiz foi viver até agora. Mas lhe afirmo, nunca fiz nenhum mal ao clã Kora. – Ela fala, deixando um pouco de indignação transparecer na voz.
Aquilo tocou alguns doshins, filhos ou parentes de mortos naquele dia, alguns baixam a cabeça, outros ficam indignados pela audácia da criminosa ao mencionar o episódio. Mayuki a Konichi jazem calados, sabem que suas vidas agora estão nas mãos da ronin.
Sui aquiesce em concordância, cerra o cenho enquanto olha brevemente para o céu, buscando uma memória e fala – Meus pais eram magistrados desta cidade quando os Date invadiram. O senhor Higo na época evacuou toda a vila para o castelo, mas ordenou que os magistrados defendessem as suas posses, para evitar saques. Eles tiveram sucesso nisso, mas no final foram executados por terem sido leais ao inimigo... O inimigo nos olhos dos Date e dos novos senhores Higoi eram o povo de Higo no Toshi, que nunca mais se recuperou. – Volta a olhar a ronin e fala. – Você é um de nós, Mizumi, um de nós que continua com a cabeça erguida e isso é o motivo de sua traição, mas será este seu único pecado?
- Higoi-sama, gostaria de saber se tem intenção de ficar no meu caminho ou não. - Pergunta Mizumi, já demonstrando impaciência.
- É o meu trabalho como samurai dos Kora, acredito que entenda isso. – Ele responde. - Mas antes, permita-me mais duas perguntas.
Mizumi aquiesce com a cabeça, sua postura já se alterando para uma mais combativa.
Sui também arrasta seu pé para trás, trocando o bastão para mão esquerda e pondo a mão direito no cabo da espada. Ao verem aquilo, os doshins dão um passo involuntário para trás e se preparam para um combate iminente.
- O que veio fazer aqui?
- Vim recuperar minha herança que jaz nas entranhas do castelo Higo. É meu dever por fim nessa loucura que meu tio começou. Fala já concentrada, enquanto desata a sombrinha de sua espada de madeira, que servia como base.
Herança dos Higo? Como? Todos os símbolos de autoridade de Muzubushi e Mayumi foram levados para os atuais senhores Higoi, que herança é essa que escapou o escrutínio dos Date e que podem servir para contestar os senhores Higoi atuais? Mais importante, se isso for verdade, vale a pena lançar a família numa nova guerra civil apenas para corrigir um erro?
- A segunda pergunta. - Mizumi interrompe os pensamentos de Sui de forma ríspida.
Sui se recompõe – Pretende fazer algum mal à população desta cidade em seu intento? – Sui lança essa pergunta para finalmente calibrar as intenções da ronin.
- Não Higoi-sama, não mais do que já causei.
O magistrado sente sinceridade em Mizumi. Do começo ao fim ela foi honesta, incluindo ao mentir sobre os reféns, ficou claro para ele que ela quer os proteger. Vai ser um prazer ajudá-la, mesmo que da pequena forma que ele pode. Seus pais ficariam orgulhosos.
O magistrado respira fundo e ordena aos seus doshins que continuem o caminho a vão socorrer os samurais caídos. Eles olham confusos para Sui, alguns protestam dizendo que não o abandonarão, isso irrita Sui.
- Vocês são doshins desta cidade e seu primeiro objetivo é a proteger! Vocês não são samurais, então não precisam arriscar suas vidas contra esta fugitiva que não ameaça esta cidade! O segundo objetivo de vocês é obedecer ao magistrado, e eu os comando continuar e socorrer os samurais caídos!
- Mas senhor... o mais corajoso deles começa.
- BASTA! – Sui esbraveja. – Vão imediatamente, quem ousar me contestar será destituído!
Vendo que a decisão de seu senhor é final eles se vão. Alguns lançam olhares de ódio para Mizumi, outros de súplica há ainda os que a olha com admiração enquanto passam pelo trio.
Ronin e magistrado se fitam, cada um se pondo em posição de duelo enquanto os passos dos doshins se distanciam.
- Se planejam invadir o castelo disfarçados como entretenimento, estão fadados a fracassar. – Diz Sui. – Apenas eu e Keitarô podemos permitir estranhos entrarem nas ruínas e vocês não tem nenhuma prova que eu os enviei. – Termina dando tapinhas no seu tessen10 preso ao seu cinto – o selo de seu ofício.
Mizumi aquiesce em compreensão, enquanto toma sua pose de combate, descansa seu boken junto a cintura, com a ponta virada para trás e para baixo, a mão direita descansando sobre o cabo, como se oferecesse um presente, enquanto inclina a cabeça para frente, como se oferecesse uma curta mesura.
Higoi Sui está dividido. Como samurai ele deve obedecer aos seus senhores, a alternativa é a morte. Mas como um homem daquela terra sabe que trairá seus ancestrais se aniquilar aqui e agora essa mulher. Ele reza para que ela seja tão boa quanto parece, porque ele não irá se segurar. Ele arrasta sua perna direita para trás, enquanto desembainha sua espada e a posiciona rente ao seu corpo com a ponta apontada para sua oponente, a intenção clara daquela postura é um único golpe fatal.
Os dois combatentes esperam, é possível ainda se ouvir os doshins correndo pelas ruas, cada vez mais distantes, até que os últimos sons de sua corrida desaparecem na cidade. Um silencio tênue domina agora o cenário. Súbito eles atacam.
Sui age primeiro, seu golpe longo projeta a ponta da lâmina como o bote de uma serpente contra o coração da ronin. Se for para derrotá-la, que ele dê a ela uma morte rápida. Ela faz o que ele esperava nessa situação, recua para não ser atingida, por isso ele não havia se estendido completamente, tendo lançado uma finta para descobrir onde ela se lançaria e atacá-la quando estivesse desequilibrada. Ela se reposiciona pela esquerda, o que é curioso, mas irrelevante para seu tipo de ataque, que é uma estocada. De repente ele sente um choque na mão direita, como se tivesse sido atingido por um raio. Ele repara que a garota está totalmente de lado, sua espada de madeira tem a ponta ainda apontada para baixo, mas agora para a frente. Ela desferiu seu golpe, mas quando?
Finalmente ele entende ao tentar executar seu ataque, não tem mais força nenhuma no pulso, um novo choque percorre seu corpo quando ele tenta fazer o esforço, fazendo apenas sua espada cair debilmente no chão. Ele olha para sua mão e vê uma estranha curva no seu pulso e um inchaço que fica cada vez maior. Um novo choque de dor faz derrubar seu jitte e agarrar seu pulso traumatizado. Ele olha para a ronin, ela está sombria, triste até. A dor é insuportável, ele rapidamente apalpa o punho, parece quebrado, mas nada fora do lugar, o exame só faz aumentar a dor.
A ronin aguarda para ver se ainda há luta no magistrado. Ele até tenta, mas a dor é intensa. Finalmente ele se rende a dor e solta um gemido se prostrando de cara no chão.
Mizumi faz uma profunda reverencia em respeito ao oponente e reata a sombrinha ao boken.
– Vamos, precisamos continuar. – Ela fala ao seus dois aturdidos companheiros que parecem só terem voltado a si agora.
Mizumi espera Mayuki liderar o caminho, enquanto Konichi vai até o convalescente magistrado e pede permissão a ele para pegar o seu leque, ele não espera por uma resposta, apenas lançando uma pequena prece de agradecimento ao amigo. Com o leque em mãos, corre para o lado das duas mulheres, e o trio retoma seu caminho até as ruínas do castelo Higo.
Sui lutou com todas as suas forças, mesmo contra suas convicções e acabou perdendo como um amador e agora chora baixo de dor no chão enquanto a criminosa e seus reféns sobem até o castelo. Ele gostaria de pensar que valeu a pena, mas a dor não o permite sequer isso.
Glossário de termos
1 - aprendiz de gueixa. Diferente do que se pensam, gueixas não eram prostitutas, mas profissionais do entretenimento que também poderiam ter relações sexuais com seus clientes, embora isso não fosse sua função principal. Maiko significa literalmente - "a garota que dança".
2 - Doshins são os ajudantes do magistrado. algo como os "deputados" do xerife. Eles não precisam ser samurais e muitas vezes são camponeses voluntários.
3 - Netsuki é um pequeno artefato em forma de algum tipo de animal que serve para fechar uma bolsa de moedas.
4 - Wagasa é uma sombrinha oriental.
5 - Kasa é um típico chapéu cônico japonês, eles podem ser de vários materiais. O mais comum é o tsuegasa, de palha. Os militares, como o do magistrado se chama jingasa.
6 - Hanji - magistrado
7 - Jitte - uma arma curta consistindo num cabo de madeira com duas pontas rombas de metal afixados. Muito parecido com o Sai, mas apenas com duas pontas. Diferente do sai, o jitte era considerado uma arma de estatus da lei, servindo como uma espécie de cacetete.
8 - Oakasan - mãe. No japão e em Ryuu Tazai, não existe sogros e sogras. Quando as pessoas casam, a mãe de seus parese se tornam suas mães e o mesmo com seus pais. Uma pessoa casada então tem dois pais e duas mães, por isso que Konichi chama Obayuki de mãe.
9 - Kemari - um esporte que consiste em um grupo de pessoas fechada em um círculo onde eles chutam uma bola passando um para o outro sem deixar ela cair no chão. Quem deixa a cair "perde" e saí do círculo, onde os demais jogadores continuam até só sobra um.
10 -Tessen - um leque duro, normalmente de metal, usado por autoridades como magistrados e samurais em comando. Muitas vezes usado para gesticular ordenas em movimentos e códigos à distância.