Gillian Scaldmere apeia de seu poderoso cavalo negro de guerra ao avistar sua mãe a frente do castelo “o que ela faz aqui, no frio?” pensou ela. Sua amiga e amante, Sarissa, que cavalga ao seu lado com um cavalo branco, chama atenção para que ela amarre seus longos cabelos loiros, pois sua mãe não gosta que ela cavalgue com eles soltos.
- Mãe, que bom ver você fora do castelo! Mas está frio, vamos para dentro agora!
- Me cansei do castelo, meu anjo. Quero lhe parabenizar pelo dia e pedir que não fique brava comigo. – Retruca a mãe.
- Está febril? Por que ficaria brava com você?
- Vou me separar de seu pai, não é culpa sua. E acredito que será melhor para todos nós. Seu pai não precisará se preocupar comigo. E minha saúde melhorará no castelo de meu pai. – A mãe olha esperançosa para Gillian. – Filha, por que não vai morar comigo? Seria melhor para mim também, você cuidaria de mim e teria mais espaço para andar com seu cavalo! Além disso, ficaríamos mais juntas, e poderia lhe mostrar um truque ou dois de equitação.
- Mãe, está louca? – A filha pergunta em tom jocoso e preocupado. – Como aquela ruína de meu avô melhorará sua saúde? E eu ir com você? – Ela vira a cabeça e ri em deboche, estreitando os olhos azuis e felinos. – Só porque as terras de meu avô são um monte de nada, não significa que tenha mais espaço para meu cavalo! E equitação? Nunca vi você andar a cavalo na minha vida! – A filha passa a derramar remorso na fala. – Você nunca saiu deste castelo, está sempre doente, é obediente e submissa ao meu pai, nem parece uma Scaldcoste! Não comanda nada, não é obedecida por ninguém! Apenas esquenta a cama de meu pai, e vem me falar de fugir de casa e andar a cavalo como se a senhora tivesse minha idade? A febre afeta seu juízo agora?
A mãe baixa a cabeça derrotada, sua frágil pele branca cora de humilhação. – Tem razão filha, como sempre, me desculpe e feliz aniversário.
Quando a baronesa se vai, Sarissa toca o ombro da amiga. – Não foi muito dura, Gill?
- Talvez um pouco, vou falar com meu pai a respeito desta estranha conversa.
- Seria prudente? A bela moça negra de olhos dourados pergunta.
- Ninguém ama mais minha mãe que meu pai.
A jovem relata a conversa para o barão Scaldmere, ao ouvir os detalhes da altercação, o barão Scladmere esfrega o queixo bem afeitado e pontudo e reflete preocupado. – Provavelmente é mesmo produto da febre, meu anjo. Fez bem em ter me contado, ela não deveria ter saído do castelo aquele dia.
- A culpa foi minha, pai. Ela saiu porque era meu aniversário, apenas os deuses sabem quanto tempo ela ficou me esperando lá fora! Deveria ter entrado e falado com ela.
- Tem toda razão, a culpa é sua! – Vocifera o barão mostrando uma máscara de pura raiva emoldurada pelos seus cabelos cor do sol. – Saiba seu lugar, garota! Seu aniversário é, antes de tudo, uma comemoração a minha virilidade, depois a fertilidade de sua mãe. Depois vem o jubilo dos camponeses pela sua longevidade e, por último, à sua saúde! Posto assim, você tinha que ver sua mãe!
- Me desculpe pai. – Responde Gillian humildemente.
- Me dê um beijo e vá a seus afazeres.
Na manhã seguinte, o barão chama sua filha.
- Anjo, sua mãe se foi. – Fala o barão com a voz quebrando carregada de tristeza.
- O que? – o que? – Como? Não pode ser!
- Pela manhã, a doença a levou...
- Não, meu pai, não pode ser, preciso vê-la! ...
- Os clérigos já começaram com os rituais da limpeza do corpo e da alma dela, você não pode vê-la, apenas no funeral.
Frustrada, a jovem parte em disparada do salão, monta no cavalo e galopa, pouco se importando se os camponeses têm tempo de se desviar ou não. A única coisa que pensa é nas duras últimas palavras sem amor que dirigiu a sua mãe...
O Funeral se dá no castelo Scaldcoste. Outrora importante, o castelo agora está com sérias necessidades de reparos e suas terras precisam de mais arrendatários para ser mais próspera. A família Scaldcoste são de primos dos Scaldmere, o avô de Gillian é tio de seu pai.
O funeral é solene e espartano, após o enterro, Gillian e seu avô, Bert, se encontram sozinhos. O velho de cabelos cinza puxa conversa com sua neta para matar o silêncio.
- Me dói ver sua mãe assim, sem vida. Ela era como você. Petulante e desobediente, mas livre, desimpedida, independente. Quando vi você chegando montada a cavalo, a frente dos guardas de seu pai e a frente do próprio barão Scaldmere, com este narizinho afilado apontando para o alto, pensei que via minha filha. Mas então me dei conta de minha idade e porque recebia, finalmente, a visita de minha filha e minha neta...
- Vô, não faz sentido, minha mãe em nada se parecia comigo, apenas a aparência mesmo. Ela era submissa e obediente, tadinha. Tão livre quanto uma delicada flor que precisa ser cuidada constantemente. Estou mais para um Gerânio. – Sorri triste da própria piada.
- Aí que se engana, minha neta! Sua mãe, posso arriscar, era muito mais teimosa que você, posso apostar! Não queria que ela cassasse com seu pai e a proibi de fazê-lo, próxima vez que a vi foi no altar com ele!
- Talvez isso tenha sida na juventude dela, meu avô. Quando casou pode ter se transformado em uma exemplar e tediosa senhora de terras. Ou pode ter sido quando eu nasci, se tornando uma tediosa mãe.
- Isso, você está certa. Com certeza foi quando se tornou uma esposa. – Retruca o conde Scaldcoste num tom rancoroso, enquanto olha para o barão Scaldmere. Sua neta percebe isso. – Mas estou já lhe tomando muito tempo! Vá Clare, vá ficar com sua amiga!
- Clare é sua filha, vô. Gillian fala com pena da senilidade do conde. – Ela está morta. Sou eu, sua neta. Gillian.
- Claro, claro. A cabeça do velho tomba dentro de suas grossas mãos, e ele soluça em tristeza.
Mais tarde Gillian fala da conversa que teve com seu avô. Reforça a senilidade dele, que a confundiu com sua mãe e que sugeriu que ela ficou doente com o casamento. Eis que o barão Scaldmere fala:
- Ele nunca gostou de mim, isso é verdade. Quanto a sua senilidade é de se esperar, vivendo num mausoléu solitário como aquele castelo. Quanto a sugestão dele, você já justificou, ele está ficando velho e senil. Já quanto você se assemelhar a sua mãe, sim meu anjo, ele tem toda a razão. Você tem toda a beleza de sua mãe.
Ao falar isso, o barão afaga o rosto e pescoço da filha com afeto desconcertante. Por um momento Gillian viu desejo inapropriado nos olhos de seu pai, como se ele a desejasse. Mas afastou o pensamento obsceno quando o seu pai retirou a mão de seu pescoço bruscamente.
- Fez bem em ter me contado isso, talvez tenhamos a razão do porquê nossos tributos serem tão parcos por essas terras. Com a morte de sua mãe nada mais protege a negligência dos Scaldcoste.
Três dias depois, Gillian soube que seu avô morreu em um acidente de pesca, no lago. Ele era um exímio marinheiro. É muito estranho que ele tenha dormido e seu barco virado.
Ela deixa as suspeitas de lado, ela tem muitas coisas na cabeça agora. Desde a morte de sua mãe, seu pai está cada vez mais interessado em tê-la por perto, a proibindo de fazer qualquer coisa que possa machucá-la. É ele agora que escolohe o que ela vai vestir ou com quem ela anda. Não vê mais Sarissa há três semanas... Ela torce para que isso seja apenas um comportamento de luto e que se vá com o tempo. Que seja mais cedo do que tarde.
Dia após dia o Barão Scaldmere poda cada vez mais sua filha de suas liberdades, há dias que ela passa inteiro sem ver o sol! Assim ela acabará doente... como sua mãe.
Em uma noite, seu pai exigiu que ela vestisse uma roupa idêntica a de sua mãe e fosse jantar com ele. Neste estranho dia ele a elogiou sua beleza de forma embaraçosa e chegou a lhe acariciar as pernas!
- Pai, este comportamento é inapropriado. Protesta Gillian tentando esconder o embaraço.
- Você tem que se acostumar com isso, Gillian. Você é uma Scaldmere e não há sangue mais puro que o nosso para continuar nossa linhagem. Fala o barão como se estivesse falando algo casual sem interromper as carícias.
Gillian não soube como reagir. Que tipo de conversa era aquela? Fora a sanidade de seu pai consumida pela dor de ter perdido sua esposa?
Ao terminar o jantar, o Barão deu uma última ordem a sua filha.
- Quero que me espere hoje em meus aposentos, querida.
- Não pai, isso é loucura! Sou sua filha, esqueceu? Não sou minha mãe!
- VOCÊ É O QUE EU QUISER QUE VOCÊ SEJA! Esbraveja o Barão, seu rosto alterado numa máscara maligna de fúria – Sua mãe ficou em meu caminho ao falhar em me dar um varão, e veja o que aconteceu com ela! Meu tio tentou envenenar sua cabeça contra mim, e veja o que aconteceu com ele! Ousa mesmo ficar contra minha vontade? Se me confrontas, saiba que posso forçar minha vontade em você quando eu bem aprouver! - O barão Scaldmere se recompõe enquanto passa as mãos nos cabelos. E olha novamente para a filha, que está paralisada de medo, lagrimas correndo copiosas de seu rosto congelado pela revelação pavorosa.
- Lhe espero hoje em meus aposentos, não me questione ou lhe tomo aqui e agora. Fala com uma frieza desumana.
Finalmente, tarde da noite, Barão Scaldmere se retira a seus aposentos. Seria neste dia que ele finalmente daria um propósito para sua filha. Porque não pensou nisso antes? Clare já era velha demais e já havia secado, não importasse quantas vezes ele a fertilizasse. Deveria ter se livrado dela antes e testado Gillian antes dela se tornar a maria rapaz que se tornou.
Chegando a seus aposentos, os encontra vazios. Então ela decidiu o desobedecer? O rebelde sangue Scaldcoste é forte nela, há, mas ele ia quebranta-la.
Na manhã seguinte Barão Scaldmere mandou seus guardas prenderem sua filha por desobediência, mas já era tarde. Ela não se encontrava em nenhum lugar. Nem no castelo, nem na vila.
Foi a primeira vez que Gillian desobedeceu a seu pai. Chorou copiosamente diante da situação desesperadora. Seu único plano era chorar até dormir e esperar que tudo não passasse de um pesadelo. O choro dela, no entanto, atraiu atenção de sua amante e amiga, que sorrateiramente veio a sua ajuda.
- Não pode aceitar assim essa sina, meu amor. Deve sair daqui enquanto pode!
- Mas para onde eu iria? Com a morte de meu avô, todos os demais lordes são aliados de meu pai!
Sarisse aquiesce. -É por isso que deve ir para o sul, para a terra dos Vales, lá seu pai e seus aliados não tem poder.
- Para os vales? Mas me matariam se soubessem quem eu sou!
- É por isso que deve ir de forma a não ser reconhecida e nunca mais usar o nome Scaldmere.
A ideia não agradava Gillian, pois ela teria que abrir mão de todas as regalias que estava acostumada, mas isso era melhor que a alternativa.
- Você irá comigo?
Sarissa baixa a cabeça entristecida. – Não posso, meu amor. Preciso ficar para me certificar de que seu pai nunca lhe encontre.
Gillian entende a lógica de sua amante, mesmo assim aquilo é intolerável, já ficaram muito tempo afastadas.
- Eu voltarei por você. Voltarei por você, voltarei por meu avô e voltarei por minha mãe. Se meu pai os matou, eu juro... voltarei para arrancar seu coração negro de seu peito!
Sarissa lança um sorriso triste para a amiga. -Só não faça nada precipitado, lembre-se de todas as lições que recebeu sobre guerra. Primeiro estabeleça-se, angarie recursos e aliados, conheça o inimigo e explore suas fraquezas.
-Não sou uma tola.
-Não é.
Nesta noite Sarissa cortou os longos cabelos loiros de Gillian os deixando curtos e desgrenhados, emprestou a ela roupas comuns suas. Gillain levou apenas o necessário e se armou de uma besta, alguns quadrelos e sua espada. As duas se esgueiraram para fora do castelo, onde Gillian montou em sua égua de combate e partiu sob a sombra da noite e sob o olhar vigilante de Sarissa.
Enquanto cavalga na escuridão seguindo as estradas secundárias sugeridas por Sarissa rumo aos Vales, Gillian pensa em seu pai.
Será que ele sempre fora assim? Nunca foi próximo dela, não deixava nada faltar a ela, é verdade, mas também a ignorava. Ela sabia que ele exigia a sua mãe por um filho homem, e seu distanciamento apenas a fazia se sentir culpada por existir. Se tornou excelente em equitação, arquearia e esgrima para que ele visse nela o filho que não tinha, mas nunca era o suficiente.
Tão desesperada ele a deixou por seu afeto, que traiu a confiança da mãe, traiu o amor do avô para enfim despertar o amor de seu pai... Esse amor doentio.
Voltaria sim, mas desta vez para tirar dele tudo que ele tirou dela, mesmo que ela precise se tornar uma selvagem dos Vales para isso.