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domingo, 23 de julho de 2023

A Dama da Espada, Parte Final

Apesar de todas as precauções, eles se certificam de que realmente estão a sós no corredor que leva até o santuário, como esperado, ninguém está lá e o caminho está livre. Por que seria diferente? Pois quem acompanha a garota é Date Masakane, e seus soldados não ousariam ir contra suas ordens. 


 

Antes de sair, ele se reuniu com seus subordinados e ordenou que eles usassem todos os homens disponíveis para reforçar as entradas e saídas, não sendo necessária a guarda de seus aposentos. Seus leais subordinados aceitaram suas ordens sem sequer pensarem duas vezes, o que prova a lealdade e confiança deles, mas também mostra a falta de iniciativa e imaginação, pois é sempre um erro deixar o comandante indefeso.

Com o corredor vazio, os dois caminham até os portões do santuário, a menina está abnegada, ele sente que ela ainda não confia plenamente nele, mas confia o suficiente para segui-lo. Gostaria que meus Chui¹ tivessem a esperteza desta garota pensa.

Masakane abre o portão sem fazer barulho e leva a Pequena Dama até a frente da gigantesca estátua de Raman ele a obriga a fazer exatamente o que fez da última vez. Ela reluta um pouco, mas o faz, cumprimentando a mão do raman², usando todo o peso do corpo dela para isso. A mão do raman cede, e sua barriga abre. Masakane afasta a garota da passagem e a observa, parece haver um túnel por trás. Ele pega uma lanterna do santuário e se prepara para entrar.

- Entre logo atrás de mim. – Masakane fala para a pequena Dama enquanto engatinha pela passagem até o túnel do outro lado.   

A barriga leva para uma caverna natural, com velhos adornos de corda e papel, como os encontrados em uma tumba ou santuário. Eles descem todo o caminho, que se nivela com a base do castelo, eles cegam em um ponto onde o túnel se abre em outra passagem em “T”. Se sente uma fraca corrente de ar à frente, mas a nova abertura chama atenção de Masakane pelo torii³ incrustado na seção. A garota insiste em continuar a frente

 – A saída é por aqui! - Ela diz insistindo e apontando.

Masakane pausa, “o que será que existe para além do torii, será a câmara mortuária desta caverna? ´

- É por aqui! - A pequena Dama insiste estridentemente enquanto tenta puxá-lo para frente. Está claro para Masakane que ela não deseja que ele investigue a nova câmara.

- Vamos investigar primeiro aqui. - Masakane fala enquanto puxa a criança com certa brusquidão.

A garota luta, claramente não querendo que ele vá, mas percebendo a inutilidade de seus esforços, desiste amuada.  O novo caminho abre para uma câmara mortuária, contendo vários hakas4, ou monumentos funerários. Junto às paredes, todos muito antigos. Logo Masakane entende que aquilo é a câmara mortuária ancestral da família Higoi, onde as cinzas dos primeiros Higoi devem descansar.

Chama logo atenção de Masakane as principais tumbas, ocupando a parede oposta à entrada. Lá ele nota a tumba de Higoi Omyuki, a matriarca dos Higoi, e logo à sua direita a tumba do filho de Kanpeki, Higo Munisai, que é adornada com uma estátua de pedra de uma carpa folheada a ouro. A carpa dourada dos Higoi – O mais interessante é que ela está atravessada por uma lâmina nua de espada, formando ironicamente o símbolo dos Higoi quando eles eram parte do clã Date quando a família se chamava Higo.

A lâmina é curiosa, pois está nua, não possuindo Tsuka5 ou tsuba6.

Masakane toca a lâmina para remover a poeira e examinar seu estado, O general não é nenhum amador em lidar com lâminas, ele sabe como examiná-las sem se ferir, inclusive como tocar e até mesmo apertar uma lâmina afiada sem se cortar, mas o mero toque na lâmina foi o suficiente para que ela mordesse seu dedo e tirar sangue. “Como isso é possível?” Ele pensa enquanto recua a mão no susto.

- Ela não é para você - A menininha fala em tom de advertência. 

Masakane olha a garota com desprezo e tenta novamente, agora com o cuidado de um amador cauteloso diante de sua primeira espada, cuidadosamente remove a poeira da parte de trás, do cume e do sulco da lâmina e mesmo assim se surpreende por ela ter arrancado pele de seus dedos.  O que será que está acontecendo? Como é possível uma lâmina ser tão afiada assim?” Ele pensa. Após o árduo trabalho de limpar uma porção da lâmina, nota que ela está em perfeitas condições embaixo da poeira e o artesanato... é inegável, é um típico trabalho de Gokusai, o armeiro pessoal de Kanpeki7! Ele está diante da lâmina Mizutamechi – dada por Kanpeki em pessoa para os Higo para elevá-los a condição de samurais séculos atrás!

Então é ali que a lendária espada se encontra? Desmontada, cravada em uma estátua e abandonada em uma cripta? É claro que não pode continuar assim, por isso Mazakane tenta remover com todo o cuidado a lâmina da pedra, mas não adianta, ela sempre tira sangue dele, e por conta da ausência de um cabo, não há forma segura de removê-la. Masakane tenta então usar a manga de sua roupa como uma luva improvisada para removê-la, foi um erro terrível, pois lâmina cortou o tecido como se fosse nada e acabou ferindo fundo sua mão. Ele xinga alto enquanto improvisa uma atadura para parar o sangramento.

- Já disse, ela não é para você! – A Pequena Dama repete com a voz carregada de ironia seu aviso.

Desta vez Masakane a ouve, e para a considerar como remover aquela lâmina em segurança. É bem possível remover ela com equipamentos adequados, é possível amarrar um barbante no buraco do encaixa da lâmina, e puxá-la para fora com uma polia, ou mesmo confeccionar um cabo para ela ali mesmo, mas fazer isso exigiria ajuda de terceiros, e com isso ele acabaria por revelar a descoberta para Ooshibu e se ele obtiver esta lâmina... se ele conseguir este símbolo ele se tornaria o senhor inquestionável da família Higoi e isso é inconcebível. Ele olha os olhos ofendidos da garota e lembra-se da lenda da espada Mizutamechi. Segundo a lenda, Mizutamechi foi uma espada desprezada por Kanpeki em sua juventude por ser tão afiada que ele próprio se feria com ela, sendo inútil usá-la em comparação a espadas mais convencionais. Porém, chegou o dia em que seu filho bastardo, Higo Munisai o desafiou para um duelo e ele teve que matar seu próprio filho. Arrependido, ele entendeu o segredo de Mizutamechi, e se tornou o único capaz de tocar a lâmina sem se cortar, porém ele teve que renunciar seu direito de tirar vidas. Ele morreu lutando em um duelo com esta espada, que acabou sendo trazida para cá, como presente aos Higo e finalmente elevando esta família ao estado de samurais. Dizem que Date Kanpeki tinha peculiares olhos azuis, diferente dos típicos olhos azuis claros dos descendentes de Yuye-no-kami, Kanpeki tinha frios olhos azuis escuros... como os da Pequena Dama. Será que os rumores estão corretos? Será que esta garotinha é a reencarnação de Kanpeki-sama? Havia um jeito de descobrir.

- Consegue remover esta lâmina daí, menina? – Masakane pergunta mais brusco do que gostaria.

- Meu nome é Higoi Muzumi, mas é Pequena Dama para você! – Fala ofendida a pequenina.

- Me perdoe, Pequena Dama – retruca Masakane com uma estudada reverencia. - Consegue tirar essa lâmina daqui?

- Sou muito fraca ainda. - Responde curta e grossa. A garota está começando a suspeitar das intenções do Date e está ficando arisca e não cooperativa. Ele precisa ser mais cauteloso.

- Entendo... – Fala ele fingindo humildade - Eu a manchei com meu sangue, seus ancestrais vão ficar furiosos com essa bagunça, pode limpá-la para apaziguá-los?

- Por que eu me importaria com isso? Eles estão com raiva de você e não de mim. – A garota está sendo difícil, mas Masakane previa isso.

- Justo, mas eu mesmo não posso limpá-la, você sabe disso, e por saber disso e não limpar você mesma, você compartilha de minha culpa. - Masakane termina o raciocínio enquanto oferece seu lenço para a Pequena Dama.

Como ele imaginou, a garota é esperta o bastante para compreender a lógica que ele criou. Ela faz uma careta e aceita o lenço. Anda até a estátua, onde sobe na sua base, com uma casualidade que vem da experiência – não é a primeira vez que ela faz isso – e começa a limpar a lâmina do sangue e da poeira sem nenhum problema ou perigo que ele encontrou, inclusive segurando a lâmina enquanto o faz, ela balança de uma forma natural ao seu manuseio, ela não sofreu nenhum acidente, mesmo não tendo todo o cuidado que ele teria para tocar uma lâmina afiada. “Ela conseguiria removê-la se fosse um pouco maior”. Conclui Masakane.

Assombrado com o que acabou de testemunhar, o comandante se perde em seus pensamentos. Ele não encontrou apenas um tesouro, mas dois! Se ela é mesmo a reencarnação de Kanpeki como ele acredita, ela combinada com essa espada é a senhora indiscutível da família Higoi e pode até contestar Kanpeki Yohiko – atual daimyo da família Kanpeki – à chefe desta família! E ela é apenas uma criança. Se ele conseguir controlá-la, vai sempre ter uma arma fulminante contra Ooshibu e seus descendentes, imagine o poder e prestígio que ele poderia alcançar se adotasse esta criança, melhor ainda, se casasse com ela quando ela chegasse na idade correta! As possibilidades são ilimitadas!

- Eu disse VAMOS!

A garotinha grita o tirando de seus pensamentos, ela já havia acabado seu trabalho e estava falando com ele há um tempo, mas, perdido nos pensamentos, Masakane não se deu conta.

- Já limpei a espada, agora cumpra sua promessa! Vamos sair daqui! – Ordena a Pequena Dama, sua voz retumbando autoridade, mas escondendo um choramingo do desespero. Ela imagina que o comandante Date tenha mudado de ideia, e ela está certa. Tudo agora mudou, ela é preciosa demais para ser perdida por um surto fútil de compaixão. E seria mesmo compaixão? Abandonando-a nas montanhas, ela teria uma morte tão ou mais cruel do que teria nas mãos do tio. Não, ele precisa mantê-la consigo. Ela pode retornar com ela até o quarto, reunir alguns samurais de sua confiança para contrabandeá-la até suas terras e cria-la em segredo até o momento certo chegar.

A garota não é nenhuma boba, ela já notou a mudança no coração de Masakane e o puxa com todas suas forças em direção ao corredor que o levará para a saída enquanto grita já choramingando com ele

- Você prometeu, lembre-se de seu juramento! Você prometeu! – Masakane pensa rápido em um argumento que poderá convencê-la de que ele ainda pretende libertá-la.  

- Sim garota! Prometi que lhe tiraria daqui, mas não será possível hoje! Lá fora, uma menina como você poderia ser facilmente recapturada – Um barulho, um estalo interrompe o argumento de Masakane o chamando atenção. Ele puxa rapidamente a garota para trás de sí que também se assustou com o barulho, e a manda ficar calada enquanto prepara-se para sacar sua espada enquanto observa a direção geral do barulho.

O estalo vem da parede da caverna, coberta por pequenas vinhas e musgo. Ele não se recorda destas plantas na parede. Os estalos aumentam, enquanto as vinhas e o musgo rapidamente crescem e se expandem na parede diante dos olhos do comandante Date. Masakane nunca foi um homem muito religioso, mas observar tão de perto um fenômeno obviamente divino é demais para ele, estarão os ancestrais da Pequena Dama furiosos com seus pensamentos ambiciosos?

O musgo e as vinhas param de crescer quando formam uma massa vegetal de formato oval, e do meio daquilo surge um ser... Um humanoide parecendo um homem pequeno, mas robusto, possuindo uma desgrenhada cabeleira preta que se mistura e se confunde com sua espessa barba. Ele veste apenas um simples robe, folhas e musgo salpicam sua pele. 

A criatura, apesar da aparência, emana um ar de serena autoridade que apenas kamis ou ramans conseguem emanar, ele olha nos olhos de Masakene e fala, mas não move a boca, fala diretamente na mente do comandante.

- Date Masakane, filho de Date Kyoko, você sabe, enquanto pensa no assunto que você contempla ir contra seu próprio destino, contra o destino dela e o destino desta existência. Ainda há tempo de voltar ao seu curso e não se condenar ainda mais do que o já fez! Seu primeiro pensamento, o de libertar a garota a seu próprio destino saiu dos pontos ainda puros de seu espírito. Eu lhe imploro, não corrompa o pouco de pureza que há em você e deixe-a ir comigo. Filho de Date Kosakune, seu papel neste capítulo está selado, mas não se preocupe, seu papel nessa história não terminou.

Com isso, o anão estende sua mão, esperando que Masakane entregue a garota.

O que é isso? Por que contra seu pensamento lógico ele sabe que o anão está correto? Por que ele guia a garota até a criatura e a entrega? Por que ele observa sem ação os dois entrarem no meio do arbusto na parede e testemunha a massa vegetal se fechar, definhando e morrendo atrás deles?

Não sobrou nada lá, eles desapareceram, ele perdeu para o próprio destino uma oportunidade que poderia mudar sua vida! Mas mudaria mesmo? O que ele seria se entrasse neste mundo de maquinações mesquinhas, trapaças e mentiras? Seria ele melhor que Ooshibu no qual ele tanto despreza? Masakane se apoia na parede enquanto busca por fôlego enquanto sua mente se preenche de medo e arrependimento. O que ele fez? Ele promoveu um ataque surpresa contra a ordem de seus superiores, depôs os senhores legítimos desta cidade, ceifou desnecessariamente tantas vidas, e ainda deixou órfã uma garota que poderia ser a resposta para o fim dos conflitos entre os Kôra e os Date, para que? Para satisfazer as ambições de uma criatura repulsiva em troca de um montante de tesouros e promessas de prestígio e glória? O que seu pai e sua mãe estão pensando dele dos assentos imaculados do Yomi? Como ele pode corrigir tudo isso?

A espada! A espada ainda está lá! Ele guardará a espada em segredo para quando chegar o momento a Pequena Dama, a sua Pequena Dama, se torne a Dama da Espada!

***

Após a batalha de Higo no Toshi, Date Masakane decretou que todos os sobreviventes que lutaram pelos Higoi de Higo, incluindo a Pequena Dama são traidores do Clã Kôra e devem ser tratados como tal se descobertos. Ele também decretou que todas as defesas do castelo Higo fossem destruídas e que este nunca mais fosse reutilizado como fortificação ou morada. Higoi Ooshibu jurou lealdade aos novos senhores Date e, graças a isso, Masakane recebeu o status de tesoureiro Date das províncias Higoi por recomendação do próprio Ooshibu.

O clã Date não ficou por muito tempo com as províncias Higo, já que Kôra Kabe, o senhor de todos os Kôra, marchava com um espetacular exército de samurais provados em batalhas no Fosso. Para evitar maior derramamento de sangue, os clãs Date e Kôra entraram em um acordo – A riqueza das províncias Higoi iriam ser todas repassadas para os Kôra e que a família Higoi junto com suas províncias retornariam aos Kôra com o fim da vida de Ooshibu.

Masakane se aposentou como samurai, raspando sua cabeça e se tornou um monge. Ele cumpria diligentemente os repasses das riquezas dos Higoi para os Kôra, enfurecendo ainda mais Ooshibu que as queria para si. Ele também manteve todos seus segredos, de seu envolvimento na conspiração e da localização do tesouro da Pequena Dama. Que permanece intocado por todos esses anos nas profundezas das ruínas do castelo Higo. Apesar de tentar viver o resto de suas vidas de forma sagrada, seus crimes e seus segredos nunca deixaram de corroer seu espírito.

***

Dez anos se passam e Mizutamechi continua lá, encravada no símbolo dos Higoi que adorna a tumba do primeiro samurai da família. Por dez anos ela esteve escondida pela escuridão das cavernas mortuárias, um facho de luz de lanterna finalmente afasta essa escuridão depois de tanto tempo, o homem que segura a lanterna, se posiciona admirado e solene na entrada da câmara, junta-se a ele uma mulher impecavelmente vestida como Maiko, mas com o mesmo olhar de respeito e assombro do marido.

A terceira mulher marcha até a espada encravada, lenta e decididamente. Sem nenhum titubeio, segura a lâmina nua com sua mão direita, que agora é grande o bastante para envolvê-la completamente. A temperamental lâmina é dócil ao toque de sua senhora, e com um puxão, a mulher a arranca do peixe de pedra. Quando a ponta da lâmina brilha a luz da lanterna pela primeira vez em séculos, as testemunhas sabem que a Pequena Dama é a verdadeira e legítima Dama da Espada.


 

O destino da vida de todos os Higoi está prestes a mudar.

 

 Glossário

1 -Chui: Tenente ou tenentes

2 – Raman: Raman foi um profeta oriundo da distante Sheeva que se tornou um deus, criando a religião conhecida como Ramanismo. Quando o Ramanismo chegou em Ryuu Tazai, acabou assimilando aspectos da religião local, por isso que em Ryuu Tazai há Raman, o deus-profeta (em maiúsculo) e vários ramans (em minúsculo), que são ancestrais venerados que morreram em honra.

3 – Torii – Torii é um arco que é sagrado tanto no Japão quanto em Ryuu Tazai. Normalmente feito de madeira, cruzar este arco purifica o espírito dos visitantes.

4 – Hakas são lapides de pedra normalmente esculpidos de forma bem vertical que marcam a localização das cinzas do morto.

5 e 6 – Cabo e Guarda mão

7 – Date Kanpeki foi o maior espadachim de todos os tempos de Ryuu Tazai. Dizem que no momento em que ele for novamente necessário, ele reencarnará para uma vez mais, lutar pelo Império.  

 

 

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