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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A Campeã da Estrela do Norte, parte 01

 

1 Porque Odeio o Frio

 



Uma vez o Saeven perguntou por que eu pareço odiar mais que o normal o frio, a minha resposta era sempre “O que vocês civilizados chamam de frio para nós é clima bom para se nadar!”

Ele ria, mas não se convencia. Ele conhecia outros bárbaros Uthgardt, meu irmão por exemplo, e eles não tinham a mesma raiva do frio como eu. Mas um dia eu resolvi falar porque eu realmente odeio o frio.

O frio na Espinha do Mundo é coisa séria, muito séria. O frio da minha terra é capaz de congelar o seu suor no instante que ele brota de seus poros, ele congela água fervente enquanto essa está sendo despejada de uma jarra. Ele arranca pele dos ossos se você for tolo o bastante de tocar em algo sem se proteger. Ele faz seu coração congelar em pouco tempo de exposição em uma nevasca e deixa a sua pele preta com uma mera brisa.

Eu ainda era muito criança quando isso aconteceu, tão criança que o que vou falar aqui foi dito pelos meus pais e irmãos.

Como eu disse, eu era muito criança e adorava brincar com meus irmãos após ajudar minha mãe com tecelagem. Eu vivia rodeada de meninos barulhentos e alegres, e eu queria ser barulhenta e alegre com eles por isso corria para participar dos jogos de luta, empurra-empurra e corrida dos meus irmãos.

         -          Ela deveria estar sempre com você, não gosto que ela brinque com homens. - Disse meu pai para minha mãe. 

         -          Não são homens, querido, são meninos e são os irmãos dela. E por que faria isso com ela se não fiz com nenhum outro depois dos gêmeos?

-         Não sei, ela pode crescer errada... - balbuciou meu pai, mas minha mãe foi logo o cortando 

-          Eu cresci desse jeito. Saí errada?

Minha mãe disse que meu pai riu alto da resposta dela e respondeu

-          Não minha estrela, você ficou perfeita.

Depois fornicaram.

Um dia desses, estávamos todos brincando e uma geada surgiu do nada, minha mãe gritou com todos para entrarmos, então foi o que fizemos. 

Eu já não gostava do frio, mas era uma raiva normal dele. O frio corta,  congela, te força a usar roupas pesadas e acaba repentinamente brincadeiras, como fez nesse dia. Por isso fiquei com raiva da geada, mas obedeci minha mãe e entrei na cabana junto com os outros.

Quando meu pai chegou da caça, eles conversaram sobre a geada e todo mundo ficou com medo de que o inverno chegasse mais cedo.

Eu não entendia muito sobre isso, só sabia que significava que íamos migrar, então já arrumei meus poucos pertences para isso. Meus irmãos mais velhos ajudaram meu pai com o trenó. Daí eu tossi. Lembro de ter sido uma sensação de que um pedaço de carne do meu pulmão tivesse se desprendido, se transformado em ar e saído em forma de uma tosse seca. 

Todos olharam assustados para mim. Mas eu não fui a única a tossir daquele jeito. Kant e Culmin também.

Vocês civilizados não devem entender, mas a vida na Espinha do Mundo é diferente, não temos construções de pedra ou madeira, porque é inútil fazer algo assim porque quando o inverno chega, temos que abandonar tudo que não podemos carregar e migrar para onde não esteja tão frio. Ficar é morrer em uma tumba de neve e nevasca. E quando você volta, tudo que ficou está agora em ruínas e enterrado. Somos parte da Tribo da Grande Serpente e nosso território se estende da Caverna da Grande Serpente até a floresta Lureskog, do Lago Congelado até o Portão da Ferida do Mundo e migramos por estes locais quando precisamos.

No dia seguinte, muitos de nós adoecemos, Kant, Culmin e eu. Kant se recuperou logo, mas eu e Culmin nem sequer acordávamos! Só ficávamos deitados gemendo e babando, muito quentes por conta da febre. Minha família não podia migrar, culpa minha e de Culmin, então eles reforçaram a cabana e torceram para que melhorássemos rápido. Mas não melhoramos.

Vou contar a verdade, eu não lembro de quase nada de quando estava doente! Só lembro de sofrer uma agonia que nunca na minha tenra vida havia sentido. Eu tremia e gemia, eu queimava por dentro e gelava por fora. A dor era tanta que eu não dormia, eu desmaiava e permanecia muito tempo assim, desacordada.

Todos estavam preocupados, não só por nós, mas pela vida de todos. Beladas e minha mãe ficavam cuidando de nós, nos dando caldo, entoando preces e nos fumegando com vapores para que melhorássemos, enquanto Dounir, Kant e meu pai saiam para coletar provisões para garantir nossa sobrevivência. O xamã da tribo ficou o tempo que pode conosco para tentar descobrir o nome do espírito maligno que nos deixava doente, mas ele não descobriu o nome e teve que migrar com o restante da tribo. Pouco a pouco fomos sendo abandonados pelos outros membros da tribo, incluindo meu tio. Isso era muito ruim, porque podia significar a morte de todos. Um dia um vento forte empurrou a neve toda para dentro da barraca e destruiu todas as fortificações que nós havíamos feito. Meu pai ficou tão furioso que chegou a gritar comigo e com Culmin.

-          Decidam logo se vão viver ou morrer!

Eu nem ouvi essa maldição do meu pai, mas parece que Culmin ouviu e não entendeu que só foi uma besteira falada por alguém que está com muito medo por todos nós. Meia semana depois Culmin nos deixou. Ele não bebia mais o caldo, depois desistiu de respirar e mais tarde desistiu de bater o coração.

Engraçado que para mim Culmin foi apenas alguém que eu conheci quando era bem criancinha e que foi embora, não fico triste nem nada ao lembrar dele, ou quando falam sobre ele. É como um irmão distante que nunca mais vou ver.

Eu tinha muito medo de perguntar o que aconteceu com o corpo dele porque, se eu soubesse ele não poderia mais voltar. Mas um dia eu soube, quando retornamos ao sopé da Caverna da Grande Serpente.  Lá há um círculo de pilares de pedra, onde os xamãs da grande serpente cantam e dançam e onde as crianças são consagradas adultas e os adultos guerreiros. Minha mãe uma vez me levou para uma dessas pilastras.

- É aqui que está Culmin.

Meu coração saltou, procurei rápido nos arredores, mas logo me dei conta do que ela queria dizer. Eles o enterraram junto a pilastra de Ches, quando ele nasceu.

Achavam que eu ia fazer a mesma coisa, e a cabana não estava mais segurando a nevasca, então me colocaram em um saco de estômago de Besta-do-Trovão¹, arrumaram tudo que puderam e iniciaram a migração no meio da nevasca. Contra a vontade de meu pai, minha mãe decidiu me carregar junto ao seu peito.

-          A viajem vai ser dura, Muiren! Quer morrer com ela? Deixe-a no trenó, ela estará bem aquecida! Se morrer, foi porque deveria morrer, mas se você se cansar junto, então serão várias mortes!

E minha mãe como sempre responde a rabugice de meu pai.

-          Não! Eu sei que ela vai viver, sinto meus ancestrais sussurrarem isso! E preciso saber quando ela acordará para alimentá-la!

Quando minha mãe fala sobre seus ancestrais não tem mais conversa. Dizem que ela tem dons divinatórios, mesmo se não tiver, quando ela fala sobre eles significa que nada no mundo vai fazê-la mudar de ideia. 

E a viagem foi dura, mesmo todos sendo cuidadosos. Se perdeu tempo porque uma vez Kant se perdeu do restante. E outra vez a nevasca estava tão forte que andamos em círculos, e tivemos que refazer o caminho.

Então chegou um dia que eu não queria comer mais caldo.

-          Coma sua teimosa, eu sei que é ruim, mas coma! Meu irmão Dounir disse para mim enquanto me sacolejava, como se sacoleja um animalzinho moribundo que você não quer que morra.

-         Ela vai comer quando puder. - Respondeu minha mãe. - Deixe-a descansar.

E todos tinham certeza de que eu não sobreviveria por muito tempo mais.

Mas meu irmão estava certo, parece. Eu não gostava daquele caldo.

Como eu disse, eu não lembro de nada nesse tempo, eu estava em outro mundo, em um pesadelo, um pesadelo de dor. Eu tinha certa ideia do que estava acontecendo, mas me pareciam parte do pesadelo. Então não senti o egoísmo infantil que toda criança tem, eu senti medo de perder meus pais de perder meus irmãos, deles morrerem por minha causa. 

Então decidi não morrer.

Duas luas depois, eu acordei com muita fome. Eu me lembro de ter ficado com raiva de estar sendo carregada em um saco de bebê e comecei a chorar!

-          Ela está viva, está viva! - ouvi minha mãe gritar com forte emoção na voz. 

Meus irmãos ficaram muito alegres, e mesmo fracos comemoraram. Meu pai disse que na hora, o rosto dele estava todo congelado, mas ele sorriu e se arrependeu por isso, porque sua boca rachou. 

Estava com tanta fome que tomei o caldo de raiz e carne. Ele descia difícil, minha garganta estava fechada, mas empurrava ele para dentro que engasgava.

- Vá com calma, sua louca! Não vá morrer engasgada agora! - Kant me alertou.

Queria andar junto com eles, mas eles não deixaram e eu acho que não conseguiria. Me colocaram no trenó onde meus irmãos começaram a brigar comigo dizendo que eu dei um susto neles, que era culpa minha pôr a gente estar lá no meio do frio. Mas também estavam muito felizes por me verem viva. Meu pai também ficou, mas não mostrou porque ainda estava preocupado com o caminho.

Decidi que não ia dar mais trabalho que já dei e que ia ficar forte logo e andar junto com todos. Andar no trenó era coisa de bebê e eu já me sentia bem grandinha para ser um bebê.  Eu tinha visto quatro ou cinco Nightals³

No final da jornada, chegamos no Lago Congelado, que não estava congelado. Toda tribo ficou contente em nos ver, e comemos carne de antílope.

Meu pai perdeu parte do nariz e das bochechas na viajem, minha mãe perdeu três dedos do pé e teve feridas no rosto. Ela nunca mais andou direito. Eles foram os que se esforçaram mais. Dounir, Kant e Beladas também se esforçaram muito e ganharam feridas devido ao frio, além disso, Kant perdeu uma orelha inteira, foi no dia que ele se separou.

Eu sofri umas feridinhas nas mãos e no rosto, mas sararam bem porque cuidaram bem de mim. Mas as feridas mais fundas ficaram na minha cabeça. Eu sou corajosa, mas quando começa a esfriar demais minhas pernas ficam fracas e meus pelos se arrepiam e uma sensação de pavor me apossa. Não é só a chegada do frio para mim, é a chegada da doença e da morte.

Depois disso sempre se preocupam comigo e me botam medo quando começa a esfriar muito, como se eu já não me borrasse dele. Engraçado, porque eu sempre sou a primeira a saber quando vai esfriar e sempre a primeira a alertar todos a se protegerem e nunca mais fiquei doente.

E é por isso que eu odeio o frio.

 

1.     Besta do Trovão é um animal muito parecido com um Paraceratherium sendo que lanoso. É uma criatura relativamente dócil, mas foge logo quando avista humanos. Quando acuada ou quando filhotes, elas lutam até a morte, e geralmente é a morte dos caçadores.

2.     Ches é Equinócio da Primavera.

3.     Nightal é o Solstício de Inverno.


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