Quando ela abriu seus olhos, a ação já tinha acabado. O
tempo que a arma de seu executor levou para chegar a seu pescoço foi muito
curto. Desde que os samurais a abordaram na entrada da vila armados com arcos e
preparados para uma batalha ela soube que não tinha chances de vencê-los, então
entrou num estado de meditação profundo para se preparar para uma nova
oportunidade. Não se importou quando suas vendas foram retiradas, nem quando
suas mãos foram desatadas, também não se incomodou de reagir quando seu executor
sussurrou para ela sobre seu pai. O que lhe chamou atenção foi o barulho dos
pés do jovem samurai se colocando em posição, o som que sua espada produziu ao
ser colocada em posição de execução e o fôlego tomado por seu captor para
executá-la, em conjunto com os murmúrios de desaprovação dos camponeses que
provocaram reclamações de indignação dos outros samurais. Quando ela abriu seus
olhos azuis ela já havia sacado seu boken numa velocidade surpreendente e
enterrado sua ponta na barriga de Kôra Keitaro, bem abaixo de seu obi,
penetrando através do encaixe de seu do e o seu kusazuri. O golpe foi forte o
bastante para que Keitarô se curvasse em sua própria barriga, perdendo toda a
precisão do golpe e enterrando sua espada na terra a centímetros da ronin. No
mesmo instante ela já havia preparado seu boken e ainda de joelhos golpeou o
rosto de Keitarô com tanta força que o jogou no chão espirrando sangue. A
garota estava de pé ao mesmo tempo em que Keitarô caia no chão. Tudo foi tão
rápido que aqueles que observavam a execução notaram apenas o segundo golpe,
tomando a reação de Keitaro ao primeiro golpe apenas como um mal estar do
samurai, ou ineptidão com sua arma, ou apenas pura sorte da ronin.
Antes que os homens de Keitarô conseguissem esboçar uma reação,
antes mesmo que alguns deles tivessem notado o que acabou de acontecer, a jovem
ronin já corria em disparada para fora do círculo que eles fizeram ao redor
dela e de seu líder. O primeiro a reagir foi um jovem magro e franzino, com um
rosto magro adornado apenas com um fino bigode, não possuindo nenhum outro pelo
no rosto, salvo pelas sobrancelhas curtas e altas. Seus cabelos, raspados até o
topo do crânio e o restante amarrado num coque atrás da cabeça, estão ocultos
por um jingasa de couro com os símbolos dos Higoi e com o ideograma “Hanji”, o
identificando como magistrado da cidade. Higoi Sui - como o homem se identifica
- suspeita quem seja a mulher, aqueles alhos azuis profundos são inesquecíveis
para o magistrado, que lhe lembra dos tempos prósperos e felizes de sua
infância naquela vila. Mesmo dividido ele ordena que seus homens bloqueiem a
passagem da moça, mas isso pouco serviu, seus homens estavam com pouca vontade
de impedir a fuga da mulher. Porém um deles estava inspirado o bastante para
obedecer, pois não reconhecia a fugitiva e estava ansioso para se destacar. O
ashigaru se interpôs no meio da passagem encarando a garota e abaixando sua
lança. A ronin pareceu que não se deu conta do guarda, pois simplesmente o
utilizou como um apoio para saltar para cima de uma casa e desaparecer no
emaranhado de becos e ruas da vila.
Embasbacados e confusos pelo que acabaram de presenciar,
samurais e guardas andavam impotentes tentando se decidir o que fazer enquanto
seu comandante se contorcia no chão buscando por ar que lhe faltava ao mesmo
tempo em que se engasgava com saliva, lágrimas e sangue. Mais confusos ainda os
guerreiros ficavam com a comemoração de todos os camponeses ao redor que se
colocavam no meio das ruas, impedindo que algum guarda ou samurai mais decidido
desse continuidade a perseguição. Finalmente, depois de quase um minuto que se
arrastou pelo que se parecia vários, Kôra Keitarô se recuperou o suficiente
para se sentar e esbravejar a todos que fossem atrás da mulher. Com a ordem,
seus samurais se puseram a perseguir enquanto os guardas foram instruídos pelo
magistrado a defender e tratar dos ferimentos de Keitarô, uma forma que ele
encontrou para se abster da perseguição da ronin que tanto representava a
glória passada da vila. Os camponeses apesar da vontade de ajudar a garota nada
podiam fazer contra os decididos guerreiros e deram-lhes passagem. Teve inicio
a perseguição nas ruas da vila.
***
A perseguição na vila ficava mais onerosa para os atacantes
cada vez que eles ganhavam terreno, a vila era plana e espaçosa próxima ao
cais, mas o caminho até a mansão fortificada era uma subida inclinada e o
terreno era mais fechado por conta das pequenas ruas da cidade que se espremia
no vale entre colinas. Uma mata ocupava a colina da esquerda, a mansão
fortificada do Tono ocupava a colina da direita e era para lá que os defensores
recuavam. Para cada defensor morto, três atacantes eram vencidos. Arqueiros da
carpa escondidos sobre os telhados faziam chover flechas sobre os atacantes e
depois desapareciam nos telhados, os defensores corriam para becos e ruelas e
lá se postavam para receber com beijos de aço os atacantes que seguiam a mesma
direção. Havia pouco espaço para os números, e os atacantes se viam obrigados a
enfrentar os defensores aos poucos, muitas vezes em combate singular. Não
podiam escolher outros caminhos, pois quando esses não estavam bloqueados por
paredes de madeira e entulho, eram armadilhas mortais de fogo e flecha. Mas
cada defensor morto era uma grande vitória para o atacante, pois as carpas eram
poucas e as andorinhas eram muitas. Assim os atacantes se moviam - lenta e inexoravelmente
- para a mansão. Aço contra aço, conquistando de forma irremediável a vitória.
Restava aos defensores apenas o consolo de matar o máximo de Date que eles
conseguissem. No cair da noite as andorinhas estavam nos portões da
fortificação. A mansão fortificada era uma defesa formidável. O casarão
principal era separado do muro de pedra por um pátio que era designado para o
senhor da cidade fazer recepções ao ar livre e promover eventos e competições
entre seus vassalos. O muro de pedra se erguia em três metros, a única forma de
passar por ele era escalando ou arrombando os grandes portões de madeira
reforçado da mesma altura dos muros, mas coroado por uma guarita, onde os
defensores podiam fazer chover flechas e chamas. A fortificação era uma
vantagem, os defensores sabiam, mas só não sabiam do que ela valeria frente a
tantos invasores como aqueles.
O fogo, os gritos, as flechas zunindo e o clangor das espadas
acordaram a pequena dama que se escondia assustada dentro de seu quarto. Quando
os atacantes chegaram na colina, Higoi Mayumi abriu a porta do quarto de sua
filha fazendo a menina gritar, a mãe chegou até a filha trajando uma armadura
leve e uma pintura de guerra, olhos aflitos e amorosos olhando diretamente para
os olhos azuis da garotinha. Mayumi abraça com força sua filha, a menina se
aconchega nos braços da mãe enquanto brinca curiosa com as amarras de seda do
peitoral dela. Higoi Mayumi sorri ternamente e sussurra para a menina:
- Agora, minha filha, quero que você tenha muita coragem.
Quero que você venha comigo até o esconderijo que lhe mostrei, lembra-se dele? Nós vamos para lá agora, permaneça lá e não
solte nenhum ruído, não importa o que veja, não importa o que ouça. Saia apenas
quando tudo estiver em silencio e não antes disso, você me entendeu? - A menina
fez que sim com a cabeça e ia começar a chorar quando sua mãe a reprovou de
forma amável, mas firme. Pediu com um gesto para ela se manter em silêncio. A
garota engoliu o choro e seguiu sua mãe até o santuário da mansão, onde ficava
o esconderijo.
O santuário era um salão espaçoso sustentado por quatro
grossas e antigas pilastras de madeira. O santuário era usado tanto para
exercícios físicos e espirituais, onde os habitantes da mansão iam meditar na
frente da estátua de bronze de Raman que ficava na oeste do templo, juntamente
com urnas contendo as cinzas dos ancestrais da família e seus respectivos
ramans feitos de madeira ou pedra. As paredes do santuário eram de madeira
enfeitada com obras elaboradas de caligrafia e armamentos de ancestrais da
família. Lá também havia um suporte com armas para treino penduradas, pois lá
também se exercitava o poder marcial dos moradores. A entrada do santuário era
um grande portão duplo de madeira, com 3 metros de altura, ladeado por um arco
em formato de torii, folheado em ouro. A pequena Muzumi fez seu melhor para não
fazer nenhum som, enquanto sua mãe entrava no santuário e levava sua filha para
a ala oeste, perto da estátua de Raman.
Ao chegarem ao esconderijo, um piso falso embaixo do tatami
do santuário, sua mãe a colocou lá e a enrolou em lençóis para melhor
disfarça-la e novamente a instruiu. - Lembre-se, nenhum ruído até que tudo fique
em silencio, depois agradeça a Raman e fuja para a mata, não deixe ninguém lhe
ver, entendeu? - A menininha fez que sim com a cabeça enquanto olhava a
contemplativa e agradável estátua de bronze de Raman, mas quando sua mãe ia
fechar o alçapão ela tentou chamar pela mãe uma vez com a voz chorosa. O pedido
de sua filha partiu o coração de Mayumi, mas ela trancou a filha mesmo assim,
acendeu incensos para os kami e começou a rezar para que eles lhe dessem força
para matar o máximo de Date antes de morrer e que sua filha ficasse segura e
conseguisse fugir para crescer e viver.
Lá fora alguns defensores conseguiram entrar na mansão antes
dos atacantes, em formação protegendo um homem de ataques e flechas. Este home
traja de armadura negra e vermelha, acobertada por um haori cinza com os mon
dos Higoi e dos Kora. Ele estava empapado em sangue inimigo, com uma sangrenta
katana empunhada. O homem tinha um rosto severo e olhos afiados de um guerreiro
experiente, sem qualquer pelo que não fossem os das sobrancelhas esguias, seria
um homem bonito se não fosse uma depressão em forma de sulco em sua bochecha
esquerda que risca seu rosto até o pescoço. Ele é o Tono da cidade, Higoi Muzubushi. Os
portões foram fechados atrás dele e seus homens deixando de fora leais
sobreviventes que se voluntariaram para se sacrificar e dar tempo para seu
Senhor entrar em segurança na fortificação. Seus sacrifícios não serão em vão,
Muzubushi pensou, para cada um de vocês levarei dez deles para o Jigoku.
- Para as muralhas! Muzubushi gritou. - O traiçoeiro
exército Date se aproxima, vamos dar a eles fogo e aço e fazer com que eles se
arrependam amargamente por este ataque! Para as armas, Kôra! Para uma morte
honrosa e heroica, pois nossos ancestrais nos esperam no Yomi!
O grito inspirado dos defensores foi ouvido de longe e foi
respondido por um grito de guerra de seus atacantes. Fogo e flecha foram
trocados pelos dois lados. Os Kora mataram muitos Date que avançavam e
escalavam as muralhas, mas também perderam homens. Gradativamente os Date
conseguiam escalar os muros e enfrentar no corpo a corpo os samurais
defensores. Muzubushi matou muitos que ousavam enfrentá-lo no corpo a corpo,
mas quando os atacantes rechaçaram os defensores do portão, Muzubushi não viu alternativa
a não ser se refugiar no casarão fortificado chamando sua guarda pessoal
consigo. Ele disse que ia fazer os Date se arrependerem do ataque, e pretendia
cumprir sua palavra. O pátio estava cheio de inimigos, os poucos defensores se
viram cercados, mas havia ainda muito antes que os Date se considerassem
vencedores.
Glossário de Termos:
Ashigaru: Soldado com pouco ou nenhum treinamento marcial
formal.
Do: O peitoral de uma armadura.
Hanji: Magistrado
Haori: Sobretudo sem mangas utilizado por cima do kimono ou
armadura. O uso de um haori denota status para quem o usa.
Jingasa: Chapéu cônico em forma de prato ou tigela. Pode ser
feito de palha de arroz (típico para monges e camponeses), couro e metal
(usados por soldados e samurais).
Jigoku: O inferno de Ryuu Tazai.
Kusazuri: O saiote de uma
armadura.
Raman: Raman foi um profeta
oriundo da distante Sheeva que se tornou um deus, criando a religião conhecida
como Ramanismo. Quando o Ramanismo chegou em Ryuu Tazai, acabou assimilando
aspectos da religião local, por isso que em Ryuu Tazai há Raman, o deus-profeta
(em maiúsculo) e vários ramans (em minúsculo), que são ancestrais venerados que
morreram em honra.
Tatami: Piso modular
encontrado em casas e templos de Ryuu Tazai.
Tono: Senhor
Torii: Arco de madeira considerado sagrado. Atravessar um
torii é um ato de purificação.
Yomi: O paraíso de Ryuu Tazai.