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segunda-feira, 18 de março de 2013

A Dama da Espada, parte 2

Quando ela abriu seus olhos, a ação já tinha acabado. O tempo que a arma de seu executor levou para chegar a seu pescoço foi muito curto. Desde que os samurais a abordaram na entrada da vila armados com arcos e preparados para uma batalha ela soube que não tinha chances de vencê-los, então entrou num estado de meditação profundo para se preparar para uma nova oportunidade. Não se importou quando suas vendas foram retiradas, nem quando suas mãos foram desatadas, também não se incomodou de reagir quando seu executor sussurrou para ela sobre seu pai. O que lhe chamou atenção foi o barulho dos pés do jovem samurai se colocando em posição, o som que sua espada produziu ao ser colocada em posição de execução e o fôlego tomado por seu captor para executá-la, em conjunto com os murmúrios de desaprovação dos camponeses que provocaram reclamações de indignação dos outros samurais. Quando ela abriu seus olhos azuis ela já havia sacado seu boken numa velocidade surpreendente e enterrado sua ponta na barriga de Kôra Keitaro, bem abaixo de seu obi, penetrando através do encaixe de seu do e o seu kusazuri. O golpe foi forte o bastante para que Keitarô se curvasse em sua própria barriga, perdendo toda a precisão do golpe e enterrando sua espada na terra a centímetros da ronin. No mesmo instante ela já havia preparado seu boken e ainda de joelhos golpeou o rosto de Keitarô com tanta força que o jogou no chão espirrando sangue. A garota estava de pé ao mesmo tempo em que Keitarô caia no chão. Tudo foi tão rápido que aqueles que observavam a execução notaram apenas o segundo golpe, tomando a reação de Keitaro ao primeiro golpe apenas como um mal estar do samurai, ou ineptidão com sua arma, ou apenas pura sorte da ronin. 

Antes que os homens de Keitarô conseguissem esboçar uma reação, antes mesmo que alguns deles tivessem notado o que acabou de acontecer, a jovem ronin já corria em disparada para fora do círculo que eles fizeram ao redor dela e de seu líder. O primeiro a reagir foi um jovem magro e franzino, com um rosto magro adornado apenas com um fino bigode, não possuindo nenhum outro pelo no rosto, salvo pelas sobrancelhas curtas e altas. Seus cabelos, raspados até o topo do crânio e o restante amarrado num coque atrás da cabeça, estão ocultos por um jingasa de couro com os símbolos dos Higoi e com o ideograma “Hanji”, o identificando como magistrado da cidade. Higoi Sui - como o homem se identifica - suspeita quem seja a mulher, aqueles alhos azuis profundos são inesquecíveis para o magistrado, que lhe lembra dos tempos prósperos e felizes de sua infância naquela vila. Mesmo dividido ele ordena que seus homens bloqueiem a passagem da moça, mas isso pouco serviu, seus homens estavam com pouca vontade de impedir a fuga da mulher. Porém um deles estava inspirado o bastante para obedecer, pois não reconhecia a fugitiva e estava ansioso para se destacar. O ashigaru se interpôs no meio da passagem encarando a garota e abaixando sua lança. A ronin pareceu que não se deu conta do guarda, pois simplesmente o utilizou como um apoio para saltar para cima de uma casa e desaparecer no emaranhado de becos e ruas da vila.
Embasbacados e confusos pelo que acabaram de presenciar, samurais e guardas andavam impotentes tentando se decidir o que fazer enquanto seu comandante se contorcia no chão buscando por ar que lhe faltava ao mesmo tempo em que se engasgava com saliva, lágrimas e sangue. Mais confusos ainda os guerreiros ficavam com a comemoração de todos os camponeses ao redor que se colocavam no meio das ruas, impedindo que algum guarda ou samurai mais decidido desse continuidade a perseguição. Finalmente, depois de quase um minuto que se arrastou pelo que se parecia vários, Kôra Keitarô se recuperou o suficiente para se sentar e esbravejar a todos que fossem atrás da mulher. Com a ordem, seus samurais se puseram a perseguir enquanto os guardas foram instruídos pelo magistrado a defender e tratar dos ferimentos de Keitarô, uma forma que ele encontrou para se abster da perseguição da ronin que tanto representava a glória passada da vila. Os camponeses apesar da vontade de ajudar a garota nada podiam fazer contra os decididos guerreiros e deram-lhes passagem. Teve inicio a perseguição nas ruas da vila.
 
                                                                              ***
A perseguição na vila ficava mais onerosa para os atacantes cada vez que eles ganhavam terreno, a vila era plana e espaçosa próxima ao cais, mas o caminho até a mansão fortificada era uma subida inclinada e o terreno era mais fechado por conta das pequenas ruas da cidade que se espremia no vale entre colinas. Uma mata ocupava a colina da esquerda, a mansão fortificada do Tono ocupava a colina da direita e era para lá que os defensores recuavam. Para cada defensor morto, três atacantes eram vencidos. Arqueiros da carpa escondidos sobre os telhados faziam chover flechas sobre os atacantes e depois desapareciam nos telhados, os defensores corriam para becos e ruelas e lá se postavam para receber com beijos de aço os atacantes que seguiam a mesma direção. Havia pouco espaço para os números, e os atacantes se viam obrigados a enfrentar os defensores aos poucos, muitas vezes em combate singular. Não podiam escolher outros caminhos, pois quando esses não estavam bloqueados por paredes de madeira e entulho, eram armadilhas mortais de fogo e flecha. Mas cada defensor morto era uma grande vitória para o atacante, pois as carpas eram poucas e as andorinhas eram muitas. Assim os atacantes se moviam - lenta e inexoravelmente - para a mansão. Aço contra aço, conquistando de forma irremediável a vitória. Restava aos defensores apenas o consolo de matar o máximo de Date que eles conseguissem. No cair da noite as andorinhas estavam nos portões da fortificação. A mansão fortificada era uma defesa formidável. O casarão principal era separado do muro de pedra por um pátio que era designado para o senhor da cidade fazer recepções ao ar livre e promover eventos e competições entre seus vassalos. O muro de pedra se erguia em três metros, a única forma de passar por ele era escalando ou arrombando os grandes portões de madeira reforçado da mesma altura dos muros, mas coroado por uma guarita, onde os defensores podiam fazer chover flechas e chamas. A fortificação era uma vantagem, os defensores sabiam, mas só não sabiam do que ela valeria frente a tantos invasores como aqueles.

O fogo, os gritos, as flechas zunindo e o clangor das espadas acordaram a pequena dama que se escondia assustada dentro de seu quarto. Quando os atacantes chegaram na colina, Higoi Mayumi abriu a porta do quarto de sua filha fazendo a menina gritar, a mãe chegou até a filha trajando uma armadura leve e uma pintura de guerra, olhos aflitos e amorosos olhando diretamente para os olhos azuis da garotinha. Mayumi abraça com força sua filha, a menina se aconchega nos braços da mãe enquanto brinca curiosa com as amarras de seda do peitoral dela. Higoi Mayumi sorri ternamente e sussurra para a menina:

- Agora, minha filha, quero que você tenha muita coragem. Quero que você venha comigo até o esconderijo que lhe mostrei, lembra-se dele?  Nós vamos para lá agora, permaneça lá e não solte nenhum ruído, não importa o que veja, não importa o que ouça. Saia apenas quando tudo estiver em silencio e não antes disso, você me entendeu? - A menina fez que sim com a cabeça e ia começar a chorar quando sua mãe a reprovou de forma amável, mas firme. Pediu com um gesto para ela se manter em silêncio. A garota engoliu o choro e seguiu sua mãe até o santuário da mansão, onde ficava o esconderijo.

O santuário era um salão espaçoso sustentado por quatro grossas e antigas pilastras de madeira. O santuário era usado tanto para exercícios físicos e espirituais, onde os habitantes da mansão iam meditar na frente da estátua de bronze de Raman que ficava na oeste do templo, juntamente com urnas contendo as cinzas dos ancestrais da família e seus respectivos ramans feitos de madeira ou pedra. As paredes do santuário eram de madeira enfeitada com obras elaboradas de caligrafia e armamentos de ancestrais da família. Lá também havia um suporte com armas para treino penduradas, pois lá também se exercitava o poder marcial dos moradores. A entrada do santuário era um grande portão duplo de madeira, com 3 metros de altura, ladeado por um arco em formato de torii, folheado em ouro. A pequena Muzumi fez seu melhor para não fazer nenhum som, enquanto sua mãe entrava no santuário e levava sua filha para a ala oeste, perto da estátua de Raman.

Ao chegarem ao esconderijo, um piso falso embaixo do tatami do santuário, sua mãe a colocou lá e a enrolou em lençóis para melhor disfarça-la e novamente a instruiu. - Lembre-se, nenhum ruído até que tudo fique em silencio, depois agradeça a Raman e fuja para a mata, não deixe ninguém lhe ver, entendeu? - A menininha fez que sim com a cabeça enquanto olhava a contemplativa e agradável estátua de bronze de Raman, mas quando sua mãe ia fechar o alçapão ela tentou chamar pela mãe uma vez com a voz chorosa. O pedido de sua filha partiu o coração de Mayumi, mas ela trancou a filha mesmo assim, acendeu incensos para os kami e começou a rezar para que eles lhe dessem força para matar o máximo de Date antes de morrer e que sua filha ficasse segura e conseguisse fugir para crescer e viver.

Lá fora alguns defensores conseguiram entrar na mansão antes dos atacantes, em formação protegendo um homem de ataques e flechas. Este home traja de armadura negra e vermelha, acobertada por um haori cinza com os mon dos Higoi e dos Kora. Ele estava empapado em sangue inimigo, com uma sangrenta katana empunhada. O homem tinha um rosto severo e olhos afiados de um guerreiro experiente, sem qualquer pelo que não fossem os das sobrancelhas esguias, seria um homem bonito se não fosse uma depressão em forma de sulco em sua bochecha esquerda que risca seu rosto até o pescoço.  Ele é o Tono da cidade, Higoi Muzubushi. Os portões foram fechados atrás dele e seus homens deixando de fora leais sobreviventes que se voluntariaram para se sacrificar e dar tempo para seu Senhor entrar em segurança na fortificação. Seus sacrifícios não serão em vão, Muzubushi pensou, para cada um de vocês levarei dez deles para o Jigoku.

- Para as muralhas! Muzubushi gritou. - O traiçoeiro exército Date se aproxima, vamos dar a eles fogo e aço e fazer com que eles se arrependam amargamente por este ataque! Para as armas, Kôra! Para uma morte honrosa e heroica, pois nossos ancestrais nos esperam no Yomi!

O grito inspirado dos defensores foi ouvido de longe e foi respondido por um grito de guerra de seus atacantes. Fogo e flecha foram trocados pelos dois lados. Os Kora mataram muitos Date que avançavam e escalavam as muralhas, mas também perderam homens. Gradativamente os Date conseguiam escalar os muros e enfrentar no corpo a corpo os samurais defensores. Muzubushi matou muitos que ousavam enfrentá-lo no corpo a corpo, mas quando os atacantes rechaçaram os defensores do portão, Muzubushi não viu alternativa a não ser se refugiar no casarão fortificado chamando sua guarda pessoal consigo. Ele disse que ia fazer os Date se arrependerem do ataque, e pretendia cumprir sua palavra. O pátio estava cheio de inimigos, os poucos defensores se viram cercados, mas havia ainda muito antes que os Date se considerassem vencedores.

Glossário de Termos:

Ashigaru: Soldado com pouco ou nenhum treinamento marcial formal.

Do: O peitoral de uma armadura.

Hanji: Magistrado

Haori: Sobretudo sem mangas utilizado por cima do kimono ou armadura. O uso de um haori denota status para quem o usa.

Jingasa: Chapéu cônico em forma de prato ou tigela. Pode ser feito de palha de arroz (típico para monges e camponeses), couro e metal (usados por soldados e samurais).

Jigoku: O inferno de Ryuu Tazai.

Kusazuri: O saiote de uma armadura.

Raman: Raman foi um profeta oriundo da distante Sheeva que se tornou um deus, criando a religião conhecida como Ramanismo. Quando o Ramanismo chegou em Ryuu Tazai, acabou assimilando aspectos da religião local, por isso que em Ryuu Tazai há Raman, o deus-profeta (em maiúsculo) e vários ramans (em minúsculo), que são ancestrais venerados que morreram em honra.

Tatami: Piso modular encontrado em casas e templos de Ryuu Tazai.

Tono: Senhor

Torii: Arco de madeira considerado sagrado. Atravessar um torii é um ato de purificação.


Yomi: O paraíso de Ryuu Tazai.

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