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sexta-feira, 30 de junho de 2023

A Dama da Espada, parte 09

 

Não havia mais tempo para se perder, então Mizumi, Konichi e Mayuki se despedem de Obayuki, Wisengashi e os pequenos. Wisengashi iria retornar para Haddan, onde torceria pelo sucesso de sua filha adotiva enquanto Obayuki auxiliaria os samurais caídos.

Mayuki estava surpresa com Mizumi, era a primeira vez que a garota usava maquiagem de maiko¹, mas se adaptou muito rápido e já não demonstra nenhum sinal de irritação.

Ouviam os apitos dos doshins à distância, então concluíram que não tardaria que a trilha de homens caídos levarem eles até o pátio. Decidiram tomar então o caminho mais rápido para as ruínas do castelo, se mantendo às sombras para chamar menos atenção. O fato de que as ruas estavam vazias devido ao toque de recolher não ajudava.

O caminho do castelo à àquela altura ia de paralelo a vila, ladeada por uma parede de rocha natural de um lado e altas estacas de madeira do outro. Já estavam no meio do caminho quando ouviram passos à frente de pelo menos meia dúzia de pessoas, Konichi e Mayuki começam a entrar em pânico. Não são samurais, são? Vieram seis com Keitarô e Mizumi derrubou todos eles. Então só poderiam ser os doshins. Os homens do magistrado são sua gente, alguns deles são amigos de jogos e vadiagem de Konichi, um par de outros já se envolveram num inocente namoro de verão com Mayuki, todos eles passaram pelas mãos de Obayuki ao nascer, eles não fariam realmente mal a eles, fariam? Era melhor não esperar para ver.

- Devemos dar meia volta, nos escondermos e deixar eles passarem. – Disse Konichi. Mayuki aquiesce concordando, mas Mizumi tem outra opinião.

- Não chegaríamos na próxima esquina há tempo, e mesmo assim, se fossemos pegos dando meia-volta, seria pior.

- Que faremos então? Se algum samurai estiver os acompanhando? – Pergunta Mayuki com a voz trêmula.

- Como disse, é pior se dermos meia volta, vamos subir e torcer que sejam apenas doshins, eles não serão hostis a vocês, eu tenho certeza. Se houver samurais eu lido com eles.

- Você sozinha? - Mayuki já ia protestar, mas sabe que ela é capaz, e sabe que ela tem razão, não conseguiriam dar meia-volta a tempo, os homens a frente deles já os notaram e assopravam seus apitos. Ela só espera que não termine em violência.

Os três fazem o melhor que podem para parecer casuais, o medalhão de Mayuki, o netsuki³ em forma de sapo que Wisengashi encantou, a ajuda na sua compostura, mas é possível se notar o nervosismo de Konichi o observando atentamente, já Mizumi apenas coloca sua wagasa4 de forma a esconder seus olhos na sombra e segue atrás dos dois.

Chega um grupo de nove pessoas, na maioria homens e um trio de mulheres, todos eles armados com longas varas de madeira que terminam em ganchos de ferro com exceção do líder, um homem franzino mais forte, usando um kasa5 de couro com o símbolo “hanji”6 costurado a ele, em sua mão ele carrega apenas um curto bastão de metal com duas pontas conhecido como jitte7. Seu nome é Higoi Sui, magistrado da cidade.

Quando o magistrado avista o trio tentando não chamar atenção enquanto andam às sombras, ele faz um gesto para que seu grupo pare e interpela os viajantes.

- Konichi-san! – Ouvir seu nome saindo com tamanha autoridade de seu amigo, fez Konichi travar por um momento – Uma palavra, por favor.

Obediente Konichi se aproxima um pouco dos doshins que estão em alerta olhando para o grupo.

- Hai, Higoi-sama! Como posso ajudá-lo? – Pergunta Konichi tentando parecer tranquilo, seu medalhão, o pedaço de tecido que ele usa para amarrar o cabelo, começa a ter efeito e ele se sente mais confortável com suas palavras.

- Compreende que estão violando o toque de recolher e que vocês deveriam estar trancados em suas casas, não é? O que fazem nas ruas? – Sui pergunta num tom casual, mas autoritário.

- Foi até bom encontrá-los, Higoi-sama, toda essa comoção na vila fez mal a Obayuki-okasan8 e ela agora está passando muito mal. E estamos subindo para buscar ajuda.

Ao ouvir isso, Sui parece realmente consternado. – E precisava ir todos vocês para isso? Mayuki-san deveria ter ficado ao lado dela! Vamos então homem! Não vamos perder mais tempo.

Konichi se surpreende que sua mentira funcionou tão bem e retruca. – Mas Sui-sama, o senhor está ocupado com toda essa perseguição àquela fugitiva, por-favor, não se incomode conosco e continue seguindo com seu dever, estou certo de que encontraremos ajuda no castelo.

-Nada disso. – Responde Sui – É meu dever cuidar da população, essa busca pode esperar, vamos todos para lá onde meu pessoal pode levá-la em segurança para o escritório.

Mayumi decide intervir. – Nos sentiríamos muito mal se isso desviasse o senhor de seu caminho, Higoi-sama! Você sabe como é Okasan, foi ideia dela nos mandar, e você sabe como ela é teimosa.

Ainda preocupado, Sui pensa um pouco enquanto fita Mayuki, neste momento, a jovem desconhecida maiko chama atenção do magistrado.

-E quem é a garota?

- Ela? É minha prima, chegou de Orimaki ontem pela... digo, a dois dias atrás... – Fala um tanto vacilante Mayuki.

Higoi Sui capta o vacilo de Mayuki e começa a achar a curiosa procissão suspeita. Porque se arrumarem tão bem para buscar ajuda para Obayuki, e quem é a garota?

- Garota! Pode baixar sua sombrinha e mostrar seus papeis por favor? – Sui pergunta com autoridade enquanto gesticula para que Mizumi se aproxime.

Konichi e Mayuki tentam desconversar, mas são silenciados quando Mizumi simplesmente obedece, seus protestos silenciosos são em vão. A garota vai até o magistrado enquanto baixa a sombrinha, quando chega a cinco passos dele ergue a cabeça revelando seu rosto.

Higoi Sui se surpreende, ela pode estar maquiada e vestida como uma maiko, mas a cor dos olhos e forma do corpo não deixam muitas dúvidas para o magistrado, ele está diante da fugitiva.

- Diga seu nome. Sui pergunta secamente, esperando para ver o que a garota irá inventar.

- Mizumi. Responde sem pestanejar a garota.

Por um momento Sui fica sem reação, a garota não demonstra medo nenhum, o fitando diretamente nos olhos, como iguais. Por um momento é Sui quem baixa os olhos, pois ele ouviu as histórias e sabe quem ela é, a altivez no olhar não deixou dúvidas, ela é a Pequena Dama.  Sui suspira e grunhe com raiva de seu breve gesto de respeito, e volta a fitar a ronin.

- Mizumi, o que faz com essas pessoas? Pergunta finalmente o magistrado.

- Eles são meus reféns, os capturei no pátio de Kemari9, onde estão quatro samurais gravemente feridos caídos. Há mais dois na rua mais abaixo, na interseção do antigo mercado.

Ao ouvirem isso, os doshins ficam pasmos, não acreditando na frieza e na capacidade de luta daquela pequena e enfeitada mulher. Alguns se preparam, prontos para a ação, mas a ronin não demonstra intenções violentas.

Boa garota, Sui pensa, ao dizer que Konichi e Mayuki são seus reféns na frente de tantas testemunhas ela os isentou de qualquer culpa de cumplicidade. Ela também indicou onde estão os feridos, o que se faz necessário que eu mande meu grupo para socorrê-los. Mesmo assim é bom tomar cuidado.

-Sabe por que está sendo procurada? - Pergunta Sui sério, pronto para qualquer coisa, ele quer acreditar nas boas intenções da moça, mesmo assim, não sabe o que ela se tornou ao longo do tempo.

Mizumi dá de ombros. – Me acusam de traição, juntamente com muitos samurais desta cidade, já vi alguns sendo executados, isso é muito triste. Tudo que eles fizeram foi defender esta cidade, e tudo que fiz foi viver até agora. Mas lhe afirmo, nunca fiz nenhum mal ao clã Kora. – Ela fala, deixando um pouco de indignação transparecer na voz.

Aquilo tocou alguns doshins, filhos ou parentes de mortos naquele dia, alguns baixam a cabeça, outros ficam indignados pela audácia da criminosa ao mencionar o episódio. Mayuki a Konichi jazem calados, sabem que suas vidas agora estão nas mãos da ronin.

Sui aquiesce em concordância, cerra o cenho enquanto olha brevemente para o céu, buscando uma memória e fala – Meus pais eram magistrados desta cidade quando os Date invadiram. O senhor Higo na época evacuou toda a vila para o castelo, mas ordenou que os magistrados defendessem as suas posses, para evitar saques. Eles tiveram sucesso nisso, mas no final foram executados por terem sido leais ao inimigo... O inimigo nos olhos dos Date e dos novos senhores Higoi eram o povo de Higo no Toshi, que nunca mais se recuperou. – Volta a olhar a ronin e fala. – Você é um de nós, Mizumi, um de nós que continua com a cabeça erguida e isso é o motivo de sua traição, mas será este seu único pecado?

- Higoi-sama, gostaria de saber se tem intenção de ficar no meu caminho ou não. - Pergunta Mizumi, já demonstrando impaciência.

- É o meu trabalho como samurai dos Kora, acredito que entenda isso.  – Ele responde. - Mas antes, permita-me mais duas perguntas.

Mizumi aquiesce com a cabeça, sua postura já se alterando para uma mais combativa.

Sui também arrasta seu pé para trás, trocando o bastão para mão esquerda e pondo a mão direito no cabo da espada. Ao verem aquilo, os doshins dão um passo involuntário para trás e se preparam para um combate iminente.

- O que veio fazer aqui?

- Vim recuperar minha herança que jaz nas entranhas do castelo Higo. É meu dever por fim nessa loucura que meu tio começou. Fala já concentrada, enquanto desata a sombrinha de sua espada de madeira, que servia como base.

Herança dos Higo? Como? Todos os símbolos de autoridade de Muzubushi e Mayumi foram levados para os atuais senhores Higoi, que herança é essa que escapou o escrutínio dos Date e que podem servir para contestar os senhores Higoi atuais? Mais importante, se isso for verdade, vale a pena lançar a família numa nova guerra civil apenas para corrigir um erro?

- A segunda pergunta. - Mizumi interrompe os pensamentos de Sui de forma ríspida.

Sui se recompõe – Pretende fazer algum mal à população desta cidade em seu intento? – Sui lança essa pergunta para finalmente calibrar as intenções da ronin.

- Não Higoi-sama, não mais do que já causei.

O magistrado sente sinceridade em Mizumi. Do começo ao fim ela foi honesta, incluindo ao mentir sobre os reféns, ficou claro para ele que ela quer os proteger. Vai ser um prazer ajudá-la, mesmo que da pequena forma que ele pode. Seus pais ficariam orgulhosos.

O magistrado respira fundo e ordena aos seus doshins que continuem o caminho a vão socorrer os samurais caídos. Eles olham confusos para Sui, alguns protestam dizendo que não o abandonarão, isso irrita Sui.

- Vocês são doshins desta cidade e seu primeiro objetivo é a proteger! Vocês não são samurais, então não precisam arriscar suas vidas contra esta fugitiva que não ameaça esta cidade! O segundo objetivo de vocês é obedecer ao magistrado, e eu os comando continuar e socorrer os samurais caídos!

- Mas senhor... o mais corajoso deles começa.

- BASTA! – Sui esbraveja. – Vão imediatamente, quem ousar me contestar será destituído!

Vendo que a decisão de seu senhor é final eles se vão. Alguns lançam olhares de ódio para Mizumi, outros de súplica há ainda os que a olha com admiração enquanto passam pelo trio.

Ronin e magistrado se fitam, cada um se pondo em posição de duelo enquanto os passos dos doshins se distanciam.

- Se planejam invadir o castelo disfarçados como entretenimento, estão fadados a fracassar. – Diz Sui. – Apenas eu e Keitarô podemos permitir estranhos entrarem nas ruínas e vocês não tem nenhuma prova que eu os enviei. – Termina dando tapinhas no seu tessen10 preso ao seu cinto – o selo de seu ofício.

Mizumi aquiesce em compreensão, enquanto toma sua pose de combate, descansa seu boken junto a cintura, com a ponta virada para trás e para baixo, a mão direita descansando sobre o cabo, como se oferecesse um presente, enquanto inclina a cabeça para frente, como se oferecesse uma curta mesura.  

Higoi Sui está dividido. Como samurai ele deve obedecer aos seus senhores, a alternativa é a morte. Mas como um homem daquela terra sabe que trairá seus ancestrais se aniquilar aqui e agora essa mulher. Ele reza para que ela seja tão boa quanto parece, porque ele não irá se segurar. Ele arrasta sua perna direita para trás, enquanto desembainha sua espada e a posiciona rente ao seu corpo com a ponta apontada para sua oponente, a intenção clara daquela postura é um único golpe fatal.

Os dois combatentes esperam, é possível ainda se ouvir os doshins correndo pelas ruas, cada vez mais distantes, até que os últimos sons de sua corrida desaparecem na cidade. Um silencio tênue domina agora o cenário. Súbito eles atacam.

Sui age primeiro, seu golpe longo projeta a ponta da lâmina como o bote de uma serpente contra o coração da ronin. Se for para derrotá-la, que ele dê a ela uma morte rápida. Ela faz o que ele esperava nessa situação, recua para não ser atingida, por isso ele não havia se estendido completamente, tendo lançado uma finta para descobrir onde ela se lançaria e atacá-la quando estivesse desequilibrada. Ela se reposiciona pela esquerda, o que é curioso, mas irrelevante para seu tipo de ataque, que é uma estocada. De repente ele sente um choque na mão direita, como se tivesse sido atingido por um raio. Ele repara que a garota está totalmente de lado, sua espada de madeira tem a ponta ainda apontada para baixo, mas agora para a frente. Ela desferiu seu golpe, mas quando?

Finalmente ele entende ao tentar executar seu ataque, não tem mais força nenhuma no pulso, um novo choque percorre seu corpo quando ele tenta fazer o esforço, fazendo apenas sua espada cair debilmente no chão. Ele olha para sua mão e vê uma estranha curva no seu pulso e um inchaço que fica cada vez maior. Um novo choque de dor faz derrubar seu jitte e agarrar seu pulso traumatizado. Ele olha para a ronin, ela está sombria, triste até. A dor é insuportável, ele rapidamente apalpa o punho, parece quebrado, mas nada fora do lugar, o exame só faz aumentar a dor.

A ronin aguarda para ver se ainda há luta no magistrado. Ele até tenta, mas a dor é intensa. Finalmente ele se rende a dor e solta um gemido se prostrando de cara no chão.

Mizumi faz uma profunda reverencia em respeito ao oponente e reata a sombrinha ao boken.

– Vamos, precisamos continuar. – Ela fala ao seus dois aturdidos companheiros que parecem só terem voltado a si agora.

Mizumi espera Mayuki liderar o caminho, enquanto Konichi vai até o convalescente magistrado e pede permissão a ele para pegar o seu leque, ele não espera por uma resposta, apenas lançando uma pequena prece de agradecimento ao amigo. Com o leque em mãos, corre para o lado das duas mulheres, e o trio retoma seu caminho até as ruínas do castelo Higo.  

Sui lutou com todas as suas forças, mesmo contra suas convicções e acabou perdendo como um amador e agora chora baixo de dor no chão enquanto a criminosa e seus reféns sobem até o castelo. Ele gostaria de pensar que valeu a pena, mas a dor não o permite sequer isso. 

Glossário de termos

1 - aprendiz de gueixa. Diferente do que se pensam, gueixas não eram prostitutas, mas profissionais do entretenimento que também poderiam ter relações sexuais com seus clientes, embora isso não fosse sua função principal. Maiko significa literalmente - "a garota que dança".

2 - Doshins são os ajudantes do magistrado. algo como os "deputados" do xerife. Eles não precisam ser samurais e muitas vezes são camponeses voluntários.

3 -  Netsuki é um pequeno artefato em forma de algum tipo de animal que serve para fechar uma bolsa de moedas.

4 - Wagasa é uma sombrinha oriental.

5 - Kasa  é um típico chapéu cônico japonês, eles podem ser de vários materiais. O mais comum é o tsuegasa, de palha. Os militares, como o do magistrado se chama jingasa.

6 - Hanji - magistrado

7 - Jitte - uma arma curta consistindo num cabo de madeira com duas pontas rombas de metal afixados. Muito parecido com o Sai, mas apenas com duas pontas. Diferente do sai, o jitte era considerado uma arma de estatus da lei, servindo como uma espécie de cacetete.

8 - Oakasan - mãe. No japão e em Ryuu Tazai, não existe sogros e sogras. Quando as pessoas casam, a mãe de seus parese se tornam suas mães e o mesmo com seus pais. Uma pessoa casada então tem dois pais e duas mães, por isso que Konichi chama Obayuki de mãe.

9 - Kemari - um esporte que consiste em um grupo de pessoas fechada em um círculo onde eles chutam uma bola passando um para o outro sem deixar ela cair no chão. Quem deixa a cair "perde" e saí do círculo, onde os demais jogadores continuam até só sobra um.

10 -Tessen - um leque duro, normalmente de metal, usado por autoridades como magistrados e samurais em comando. Muitas vezes usado para gesticular ordenas em movimentos e códigos à distância.


terça-feira, 20 de junho de 2023

Ooshibu


 

Higoi Ooshibu está nervoso, lambe os lábios secos e se move desconfortável enquanto espera no suntuoso salão de visitas do Palácio Higoi. Ele espera por Higoi Oji, seu velho guarda-costas, inescrupuloso e avarento que sempre esteve de olho na sua posição. Maldito seja!

Seus pés doem enquanto caibras atacam suas panturrilhas, ele desiste de ficar na posição de seiza¹ e se senta com os joelhos dobrados. – Oji não merece meu sacrifício – Pensa.

E lá está ele, doente, morrendo nos seus cinquenta e poucos invernos, sem herdeiros, cercado de abutres carniceiros querendo um naco de seu poder e se vendo obrigado a relegar tudo ao seu avarento guarda-costas, que mesmo tendo apenas uma esposa teve seis filhos – pelo menos ele foi leal... ou tudo não passou de teatro para este momento?

Quanta humilhação, logo ele, o senhor dos Higoi, passando por isso! O que ele fez para merecer tamanho castigo? Onde ele errou? Ah! Ele sabe de quem foi a culpa, ele sabe muito bem, são das mulheres, todas as malditas mulheres de sua vida!

Ooshibu é agora o senhor dos Higoi – família de mercadores e cortesãos do clã Kôra². Era bastante forte quando criança e tudo que ele desejava.

Nunca foi bonito, e seu corpo forte e rotundo foi ficando cada vez mais pesado e encarquilhado com a idade e os prazeres do poder, não podia se exercitar muito porque logo seu peito doía e suava muito – indício de que os deuses queriam que ele fosse servido. Tem uma verruga no meio da testa preta e gordurosa, a princípio sentia vergonha dela, mas passou a ter orgulho como marca registrada de sua força, ele não pode dizer o mesmo de sua segunda verruga alojada em sua proeminente papada, inclusive tentou arrancá-la, mas isso fez com que ela aumentasse ainda mais. Descrevem às escondidas que seus olhos são murchos, fundos e desconfiados e seus maneirismos são estravagantes e exagerados – bando de invejosos! Ooshibu pode se desagradável, mas é poderoso, sendo o senhor de uma das mais importantes famílias do clã Kôra, a família que, sozinha, alimenta todos os exércitos do Clã e financia todas suas campanhas militares, desenvolvimentos de engenharia, guerra e pesquisas místicas, muito poder descansa sobre os ombros carnudos de Ooshibu. Contudo, mesmo com o poder e o prestígio da posição, Ooshibu se sentia inseguro e desamparado.

As causas de tamanha frustração em homem tão poderoso são várias, ele sente o potencial seu e de sua família desperdiçados, ele não possui filhos, e tem certeza de que muitos dentro e fora da família o querem morto e substituído por seu irmão mais novo, Muzubushi.

Já foi casado muitas vezes, e todas as vezes sem ter filhos, sua primeira mulher, Ayane, uma mulher de poder, mas não muito bonita. Foi indicação de sua cunhada – que o inferno a tenha, era seca no útero como era em seu humor, Ooshibu tem certeza de que Mayumi sabia disso e por isso a indicou. Ele mandou-a se tornar monja e se separou dela.

Casou-se novamente com uma coisinha linda, jovem e voluptuosa de sua escolha chamada Hinata. Com aquelas ancas ele tinha certeza de que geraria muitos frutos! Mas não, por mais que ele tentasse, e ele tentou muitas vezes com ela, ela não engravidava. Bonita daquele jeito, com certeza já havia sido deflorada e seu útero destruído por abortos, ele tem certeza. Não foi difícil para Ooshibu criar “provas” de que ela andava o traindo e mandou seu executor cortar sua cabeça.

Sua terceira se chamava Mika, ou algo assim, indicação de seu ex-conselheiro. Nem um pouco atraente e gaga, mas de família poderosa e de muitos filhos. Claro que uma criatura grotesca como ela não conseguiria ter filhos! Foi um prazer afogar aquela égua na lagoa de carpas enquanto ela relinchava! Reportou o acidente para sua guarda e demitiu seu conselheiro. O maldito nem se prestou a se matar.
 
Hoje ele é casado com sua quarta esposa, linda, jovem, de boa família e de sua escolha. Ooshibu gosta mesmo dela, mas está começando a achar que também é seca, pois faz quatro anos que estão casados e ainda não engravidou, vive preocupada e assustadiça, talvez seja sua natureza covarde a causa de sua infertilidade. E sinceramente Ooshibu está cansado das mulheres. Criaturinhas patéticas e fracas que não entendem seu lugar diante da superioridade do homem viril.

Para piorar existe seu popular irmão, Higoi Muzubushi, um idiota que pensa apenas em treinar arco, espada e cavalgada, mas que se casou com a bela serpente Higoi Mayumi e no primeiro ano de união já estava gravida! Ooshibu temeu ser substituído pela linhagem de seu irmão em sua morte e que seus inimigos tentassem acelerar seu fim.

Ooshibu sempre detestou Muzubushi, pois ele era melhor em tudo que ele. A única coisa que Ooshibu era melhor que seu irmão era na esperteza. A escolha do pai para ser o herdeiro dos Higoi seria Muzubushi, Ooshibu tinha certeza disso, por isso ele usou de sua sagacidade para fazer com que o pai e o irmão se desentendessem de forma espetacular. Ooshibu tinha esperanças que suas maquinações fizessem que seu pai deserdasse Muzubushi, mas o orgulho do pai para com o filho mais novo era tão grande, que fez dele senhor do castelo Higo, em Higo no Toshi. Uma posição de honra, pela tradição antiga de espadachins da família, mas praticamente nula no que concerne o jogo de poder dos Higoi. Assim Ooshibu se tornou senhor dos Higoi, logo depois do pai ter morrido – ele já andava doente, e acabou padecendo da doença misteriosa justamente quando Ooshibu estava numa posição de força para tomar para sí o controle da família, foi inconveniente fazer os piratas que trouxeram a cicuta desaparecerem, mas valeu a pena. Porém, Ooshibu se arrepende um pouco por ter feito isso, ele poderia ter sido mais paciente e envenenado mais o pai contra o irmão e ser escolhido como herdeiro naturalmente. Agora ele não suporta os olhares que todos o jogam julgando-o não merecedor do cargo.

 Como senhor dos Higoi, Ooshibu estava decidido a fazer com que a família triplicasse em importância e prosperidade em seu reinado. A questão da falta de herdeiros diretos era um agravante terrível, se Ooshibu não conseguisse como herdeiro um filho seu, que pelo menos fosse alguém que ele pudesse confiar plenamente, algo bem raro em seus olhos. Para consolidar ainda mais poder para seus aliados na família, ele pediu ao senhor do clã Kôra, Kôra Kabe3, que o deixasse expandir agressivamente as vendas das produções do clã, esta manobra racionaria os suprimentos e comida do clã a curto prazo, mas traria grandes riquezas no futuro, principalmente para Ooshibu. Kabe foi bastante ríspido na resposta, dizendo que o dever dos Higoi é o de suprir os Kôra com alimentos e suprimentos, não o de enriquecer às custas do dever do clã de proteger o império. Frustrado, Ooshibu começou a imaginar uma traiçoeira alternativa.

Ooshibu via que sua família não aumentaria em importância e riqueza entre os Kôra, pois todo o potencial lucrativo de suas empreitadas ia para o abastecimento do clã, e suas infinitas e desnecessárias guerras contra as criaturas do Fosso4. O senhor dos Higo se voltou então às origens da família, quando Kanpeki5 visitou a terra dos Higo e os tornou samurai, eles eram tecnicamente vassalos dos Kanpeki, mas por motivos não muito claros, juraram lealdade aos Kôra. Ooshibu sabia que os Date6 cobiçavam o potencial de riqueza que os Higoi possuem e que, como Ooshibu, não conseguem entender por que os Kôra desperdiçam este potencial. Mas quando o senhor Higoi poderia atacar? Quando ele poderia lançar seu plano que catapultaria o nome de sua família e o seu para a glória e a fortuna? O tempo era iminente, e Ooshibu começou os preparativos. Com dinheiro que ele manejou desviar dos propósitos originais, Ooshibu comprou ou reforçou a lealdade de muitos Higoi importantes, e também alguns Date, os que não se interessavam por dinheiro, Ooshibu fez tentadoras promessas que fez tantos outros se aliarem a sua causa. Para aqueles que não eram comprados com promessas, Ooshibu usou de veladas ameaças e de infortúnios sutis que logo deixava claro que não era saudável estar contra os desejos do senhor Higoi. Apenas Muzubushi e seus aliados pareciam incorruptíveis. Mas eles seriam de pouca consequência a frente do tamanho da conspiração que Ooshibu criou. Restava apenas o momento perfeito.

Kôra Kabe organizou uma grande incursão do clã ao Fosso, em resposta a um castelo Kabutono7 tomado pelos terrores do Jigoku8. E Ooshibu aproveitou que o clã estava enfraquecido para orquestrar seu golpe que levou a uma das mais violentas guerras entre os dois clãs.

Ooshibu conseguiu sua vitória, embora agridoce. Os Higo e seus aliados foram destruídos, embora a filha de seu irmão tenha, de alguma forma, escapado. Juntamente com um punhado de samurais leais aos Higo. Apesar da incompetência no extermínio, o general Date responsável, Masakane, proclamou que os fugitivos seriam conhecidos como párias enquanto vivessem. Ooshibu fez questão de reforçar e lembrar desta proclamação.

Com o fim da guerra, Ooshibu jurou novamente lealdade aos Date, mas algo aconteceu. No momento em que os samurais Date moviam-se para render os samurais Kôra de seus postos nas províncias do Higo, Kôra Kabe havia acabado de voltar da incursão ao fosso e levava consigo um exército Kôra recentemente experimentado em batalha. A guerra se reiniciaria mais sangrenta do que nunca.

Neste momento, quando os dois exércitos se fitavam, Silkami Sildafen9, o Saiko Haidakan10 em pessoa, apareceu. E ordenou o fim do conflito. Kôra Kabe e Date Miryoku11 foram chamados para conversar com ele. Miryoku e Kabe concordaram que a continuidade da guerra seria devastador para ambos os clãs, e a perda dos Higoi seria irreversível para o clã Kôra, que após a incursão recente no fosso e a guerra em sí, estava em grande necessidade de recursos. Mas o juramento Higoi já havia ocorrido e não se volta atrás de juramentos assim levianamente. A campeã do clã Date propôs então uma saída benéfica para os Kôra. Que enquanto o Kôra precisasse se recuperar, os recursos dos Higoi seriam inteiramente repassados a eles. Além disso, ela ainda propôs que os Kôra poderiam adquirir de volta a família Higoi e suas terras através de um acordo após a morte de Ooshibu.

A traição dos Date só pode ser explicada pela sobrevivência da maldita Pequena Dama! Enquanto houver chances desta criatura existir, o poder de Ooshibu estará sempre em cheque! E que esperar de uma maldita mulher, maldita Miroku, traidora que torce que ele morra!

Ooshibu viu sua vitória se transformar em algo vazio, seus sonhos de lucro em sua vida transformados em cinzas. Para se vingar, ele se encontra aqui, cercado por bajuladores, esperando a chegada de seu folgado Yojimbo12 para declará-lo como herdeiro caso ele morra sem filhos próprios. Ele é a melhor escolha, porque nutre tanto ódio quanto ele pela descendência de Muzubushi e Mayumi e possui as mesmas ambições de ver uma família Higoi rica e poderosa, livre das obrigações fúteis do clã Kôra. Ele o obrigará a uma jura de manter seu legado, e ele sabe que ele vai aceitar de bom grado.

Finalmente, o velho yojimbo chega, tem praticamente a mesma idade de Ooshibu, mas goza de uma saúde invejável. Trouxe consigo seu filho mais velho, Higoi Gojini, que tem o mesmo sorriso lupino de seu pai.

- Me desculpe o atraso, Higoi-sama – Fala Oji enquanto ele e seu filho fazem uma profunda reverencia – Coisas da idade me atrasaram, o senhor deve entender – sorri levemente, o que ele está tentando implicar? – Agora a que devo a honra desta convocação?

***

Alguns anos depois, Ooshibu morre por problemas de saúde sem herdeiros. Oji se torna o senhor dos Higoi e em seu curto domínio, os Higoi permaneceram vassalos dos Date, apesar das inúmeras suspeitas de corrupção e desonra de seu antigo senhor pairarem ao seu redor.

Quando o obtuso Oji morreu, seu filho, Higoi Gojini se tornou senhor dos Higoi. Muito mais astuto que o pai, ele logo notou que as investigações sobre os podres de Ooshibu eram instigadas principalmente como forma de anular a validade da jura de Ooshibu aos Date, como base de ter sido feita por uma criatura sem honra. Temendo que isso respingasse nele mesmo, ele atendeu aos pedidos dos Kôra e prestou juramento aos Kôra novamente. Hoje em dia, apesar dos Higoi serem efetivamente do clã Kôra, ainda a muita lealdade e simpatia desta família aos Date.

Mas todo esse cuidado de Gojini que permitiu sua boa relação com os Date e com os Kôra está perto ser abalado graças às ações de uma pequena ronin que decidiu voltar para a cidade onde nasceu.

***


1 Posição tradicional de se sentar de joelho e por sobre as pernas.

2 – O clã Kôra são os “defensores do império”, famosos por seus guerreiros de força e resistência descomunais e suas muitas lutas para salvar o império de uma invasão demoníaca.

3 – Senhor de todos os Kôra, também chamado como Campeão do Clã Kôra.

4 – O Fosso é uma imensa cratera sem fundo que existe nos planaltos ao sul da principal ilha de Ryuu Tazai, ela é cercada por uma imensa muralha e vários castelos construídos pelo clã Kôra. Dizem que esta cratera foi formada com a queda do filho maldito Oniyomi à terra. O Fosso liga o mundo dos homens ao próprio inferno, e milhares, se não dezenas de milhares de demônios fazem a escalada todo o ano para tentar destruir o Império. O clã Kôra se formou em volta desta cratera para proteger o Império de seus habitantes.

5 – A maioria das famílias de samurai de Ryuu Tazai foram formadas por um indivíduo que dá o nome da família. Kanpeki foi um mortal considerado o melhor espadachim de Ryuu Tazai. Dizem que em suas andanças, se relacionou com a filha de uma família de mercadores chamada Higoi – seu filho deu origem a família Higoi dos Kôra. Kanpeki também é a família do clã Date conhecida por ter os melhores espadachins e artistas de Ryu Tazai.

6 – Date é o clã mais rico e um dos mais poderosos de Ryuu Tazai, famoso por seus espadachins e cortesãos, são os que ditam a moda e os costumes do império.

7 – Kabutono – Família do clã Kôra composta inteiramente de Nidorins (raça de pessoas de baixa estatura mas muito largos vulgarmente chamados de anões).

8 - Inferno

9 -  Silkami Sildafen é o Campeão Supremo de Ryuu Tazai. Ele também é um Silkami (povo esbelto e alto, extremamente longevos cuja característica mais marcante são as orelha pontiagudas, eles formam uma família idependente chamada Silkami)..

10 – Saiko Haidakan – Campeão Supremo, o mantenedor da ordem e executor das leis em todo o Império, ele possuiu um exército próprio e todos os magistrados do império devem se reportar a ele e emprestar suas forças quando necessário.

11 – Date Miroku é a senhora de todos os Date. Também conhecida como Campeã do Clã Date.

12 – Guarda-costas

terça-feira, 6 de junho de 2023

A dama da espada, parte 08

 

A Dama da Espada – parte 08


O sujeito era baixinho e rotundo, seu bigode bem encerado e seus olhos sorridentes e afiados eram apenas detalhes da pitoresca criatura parada diante a porta. O homem se vestia de forma extravagante, com um brilhante quimono de seda azul e dourado que não disfarçava a barriga, calças douradas e folgadas com estampas pretas de insetos em voo tinham suas barras calçadas em meias azuis, o homem ainda calçava um barulhento geta¹.

Aquele espalhafatoso homem contrastava de forma absurda diante o cenário em que ele se encontrava. Quatro homens vestidos de armaduras leves se encontravam inconscientes e espatifados no chão de um simples pátio que interligava as casas de velhos moradores da vila, estariam eles tão assustados que não ousavam sair? Possivelmente sim. Todos os samurais prostrados no chão apresentavam concussões horrendas no corpo, a única pista que indicava que eles viviam era que seus peitos subiam e desciam fracamente.

Apesar da aparência inacreditável daquele homem, ele se armava com um sorriso e uma completa falta de preocupação no rosto que pareciam bastante genuínos para Mayuki.  

- Bom dia minha jovem! Sou Wisengashi, muito prazer! A senhora por acaso não teria visto uma moça, um pouco menor que você, com cabelos negros compridos, usando vestes simples de viajante e cativantes olhos alegres e azuis? Receio que estes senhores ao meu redor entraram em desentendimento com quem procuro e estou preocupado com seu bem-estar, por acaso a viu?

Ainda não acreditando naquele sujeito, Mayuki retruca.

- Olhe bem, senhor Wisengashi ou quem quer que seja, não abrigamos bandidos nesta casa, tenha um bom dia!

 

 

O sujeito fez uma cara de surpresa tão inesperada, que Mayuki demorou dois segundos para fechar a porta de entrada, tempo suficiente para que o pequenino se recuperasse.

- Tomo-lhe apenas um minuto, minha jovem! Interrompe o curioso homem. - Vamos esclarecer este mal-entendido. Veja bem, não esperava não ser esperado, é de meu por saber que minha pequena dama estaria sendo cuidada. Desconheço qualquer bandido e certamente não esperava que a senhora abrigasse um, portanto não traga coisas sem nexo a conversação, peço por um favor!

Qual é o jogo daquela criatura? Mayuki se questiona, ele sabe quem é Mizumi e deixa a impressão que é alguma espécie de aliado dela, mas será verdade ou apenas um logro para conquistar sua confiança e denunciá-la as autoridades?  Não importa, a família dela deve ser protegida, custe o que custar.

- Não sei o que o senhor está falando, homenzinho! Vá embora!

Dessa vez Mayuki fecha a porta com força, mas sabe que o homem continua lá.

Mal teve tempo para concluir que isso não bastaria para parar o tenaz anão gorducho, este se aproveita do buraco na porta para espiar por dentro, seus olhos encontram os de uma furiosa Mayuki, então ele sorri e fala.

 - Ainda estou aqui jovenzinha, precisa consertar sua porta!

- Desta vez ele vai ver só! - Pensa a indignada mulher enquanto rola as mangas e faz punhos e num movimento ameaçador abre novamente a porta e se impõe de tal forma para fora que faz com que o enxerido homenzinho recue, totalmente na luz, Mayuki se surpreende com a aparência da criatura, sua altura mal ultrapassa sua cintura, mas sua circunferência faz com que ele lembre uma enfeitada moringa d’agua. De qualquer forma, Mayuki está decidida a expulsar o homenzinho nem que precise empurrar seu roliço corpo colina abaixo!

- Escute aqui... homenzinho! Olhe ao seu redor! O senhor se comporta como se nada estivesse acontecendo e ainda me acusa de abrigar bandidos por aqui. Saiba que não pretendo deixar nenhum homem ou mulher entrar nesta casa, fui clara?

Wisengashi pisca em confusão, depois sorri e levanta um dedo professoral: - Clara não foi, mas temo que tenha sido alguma coisa que falei, não procuro nenhum bandido, procuro uma mocinha que é tão linda quanto você, mas talvez um pouquinho mais jovem. E você pode me deixar entrar, pois não sou homem nem mulher, sou um texugo², bom um texugo homem, mas um texugo mesmo assim!

Agora foi a hora de Mayuki ficar confusa: - Um o que agora? Você é doido?

- Não doido, texugo, te-xu-go.

- Quer dizer que se eu devo te expulsar na vassourada, é isso?

A discussão aloucada continuava, os ânimos de Mayuki e Wisengashi se exaltando cada vez mais quando são interrompidos pela tresloucada corrida de Konichi.


O homem completamente esbaforido chega, ele nunca correu tão rápido colina acima na vida e ainda encontrou energia para, aos pulinhos, desviar dos homens caídos no chão e dos destroços, ele para sua corrida insana arqueando próximo de Mayuki e buscando apoio nos braços da esposa, que já muito incomodada com a situação, apenas recua fazendo ele quase cair. Konichi então segura os joelhos e toma três grandes fôlegos antes de começar a falar.

- May-chan este homem é realmente quem diz! Ele é amigo da ronin, da Pequena Dama! Você tem que deixá-lo entrar!

- Está bêbado homem? – Retruca Mayuki – Que tipo de trambique é esse e lo... – Mayuki é bruscamente interrompida por Konichi neste momento, o que a faz imediatamente se calar.

- Não temos muito tempo mulher! A Pequena Dama precisa sair daqui e ele é nossa única esperança!

Mayuki se encontra temporariamente sem palavras. Seu marido nunca teve coragem de falar com ela dessa forma, para bem da verdade, a última vez que ela o viu assim tão sério foi quando ele falou com seu pai para tê-la como sua esposa, tantos anos atrás que ela quase esqueceu. O atordoamento da mulher dura apenas até o visitante tornar a falar.

- Finalmente estamos nos entendendo! – Diz notoriamente aliviado Wisengashi – Seu querido marido está correto, Mayuki-san! Temo muito que não temos muito tempo e nossa divertida discussão quase que me faz esquecer que tempo é vital em nossa empreitada!

- C-como, como sabe de tudo isso, seu bobo? – Pergunta aturdida Mayuki.

- Eu apenas sei, por-favor May-chan, você tem que acreditar em mim! – Diz suplicante Konichi.

Mayuki nunca viu antes seu marido tão sério, tão sóbrio e tão desesperado, ele é um bom mentiroso, mas ela é melhor ainda em detectar suas mentiras, e ela não vê nenhum truque em seu rosto. Convencida de que esta é mais um extraordinário evento daquele dia extraordinário, Mayuki conduz ambos para dentro do esconderijo.

- Estou de olho em você! – Diz Mayuki para Wisengashi.

- Ora, mulher! Isso não é hora para flertes!  E seu marido está aqui! – Responde o roliço homenzinho.

Surpreendentemente, o homenzinho tira de sua manga uma fita azul, muito parecida com a fita que a ronin usar para prender seu cabelo, e a coloca no centro de suas mãos em forma de concha, as levando para perto da boca e sussurra algo, para logo depois pousar a orelha sobre a fita. Depois do estranho ritual, ele começa a andar sem nenhum vacilo até a entrada oculta da oficina onde a Pequena Dama se encontra.

- E-ei! Mayuki assombrada tenta protestar, enquanto o homenzinho prontamente levanta o alçapão e começa a descer, não antes de se surpreender com a genialidade do esconderijo. Ele olha para ela e fala com um sorriso satisfeito. – Reduto oculto notável!

 Tudo que resta para Mayuki e Konichi é seguir o visitante, eles logo ouvem a comoção que o estranho causou na velha e nos meninos. Eles se apressam para descer e veem a velha senhora com as duas mãos na barriga de Wisengashi e as pernas plantadas no chão, em um determinado, mas patético esforço de mantê-lo longe. Os garotos se aninham perto da desmaiada ronin e francamente tentam acordá-la para alertá-la do potencial perigo.

Pronto Konichi e Mayuki se adiantam para explicar o mal-entendido, Wisengachi tenta delicadamente acalmar a velha senhora sem muito sucesso, enquanto ela solta ameaças e provocações tão ferinas que nem Wisengachi consegue respondê-las com sua alegre forma de falar. Konichi e Mayuki tentam explicar a situação para a velha Obayuki, mas ela só grita com eles os censurado em terem falhado com ela. O pandemônio parece instaurado, quando tudo é interrompido com um adorável gritinho de alívio.

- Wisengashi-kun! A ronin grita aliviada, enquanto se levanta com o rosto iluminado num sorriso enquanto olha para o pequeno homem, que também a olha com paternal amor nos olhos. Todos os demais se afastam, seus medos e dúvidas instantaneamente vencidos por tão terna visão.

A ronin que antes parecia tão determinada e forte agora corre como uma garotinha em direção a Wisengashi, e se desfalece em seus braços abertos.  – Wisengashi-kun! Por que está aqui?

- Shhh, minha filinha! – Fala Wisengashi enquanto a abraça e a afaga os cabelos. – Vim apenas cumprir meu papel nessa história e dar a você e seus companheiros as ferramentas necessárias para cumprir essa pequena parte de seu destino!

Obayuki, que observa a cena recostada em seu genro, finalmente entende. – É claro! Quando a Pequena Dama fugiu daqui em tenra idade, não tinha como ela sobreviver sozinha, então este homenzinho foi quem o destino colocou em seu caminho para cria-la. Este tal Wisengashi é pai adotivo de minha Pequena Dama!

Imediatamente ao concluir este pensamento, a velha senhora se esforça para prostar-se em mesura e, com a cabeça encostando o chão, fala.

- Peço que me perdoe, Wisengashi-sama, por ter duvidado de suas intenções com minha Pequena Dama! Eu lhe imploro que cuide bem dela como tem feito nesses longos anos e saiba que minha família está toda a sua disposição!

A honraria da mesura é repetida por Mayuki e Konichi, até as crianças tentam imitar, o que causa embaraço no texugo.

- Não, não por favor, levantem-se! – falam quase que simultaneamente Wisengashi e Mizumi – que depois de um trocar de olhos, Mizumi decide por deixar Wisengashi conduzir a conversa e se recosta junto a uma parede próxima, ainda muito cansada.

- Eu não exijo tamanha honraria, na realidade nem entendo por que vocês humanos a fazem, é para buscar algo no chão? Se fingir de morto como certos animais fazem? Vocês têm costumes mais interessantes do que esse embaraçoso ato! Por favor, levantem-se! Mas a senhora disse algo interessante, e que irá realmente a calhar, pois eu tenho uso para sua família!

Mayuki e Konichi se entreolham, excitação, medo e confusão passam por seus rostos. O texugo em forma de homem tira de sua manga um saquinho de ervas.

- Mas primeiro quero que a senhora Obayuki ferva essas ervas sagradas colhidas no primeiro dia de primavera da nascente nas montanhas e faça um chá com elas. Depois quero que Konichi-san e Mayuki-san me entreguem um pequeno item de grande valor de cada um.

- Vocês ouviram Wisengashi-sama, vamos logo com isso! Meus netinhos, venham me ajudar com o chá! Dizendo isso, Obayuki pega com certa reverencia as ervas de Wisengachi e, ajudada pelos netos, sobe as escadas para fazer o que lhe foi feito.

Mayuki se esforça para pensar em algo pequeno de grande valor que ela tem, será aquele Metsuki³ de jade e ouro? Ou serão suas adoradas kanzashis4 de prata que ela nunca mais as usou?  Enquanto pensa, lhe chama atenção que seu marido prontamente desamarra seu cabelo e entrega a Wisengachi a imunda tira de algodão que ele sempre insiste em usar e o pior de tudo é que o texugo parece impressionado!

- O que é isso? Vai entregar a ele esse lixo? Não ouviu o homem, tem que ser algo de grande valor!

- Mas é de grande valor, posso sentir isso! Interrompe Wisengashi. O comentário deixa Konichi vermelho.

- Grande valor? Esse pedaço seboso de algodão? Mayuki pergunta a Konichi confusa.

-Err... na verdade isso é um pedaço de seu fundoshi5, Mai-chan, do dia da nossa primeira vez... - Konichi fala um tanto embaraçado, mas não escondendo o orgulho, o que faz com que Mayuki o estapeie.

– Seu safado! Ela fala, mas finalmente entende o que ela valoriza mais, e sorrindo, tira de seu obi sua porta-moedas de moedas presa por um simples metsuki de madeira laqueada e pintada representando um sapo – ou algo parecido com um.

– “Para dar sorte” - ela fala enquanto acaricia a tosca estatueta e a retira do porta-moedas, a mostrando para Konichi. – Foi o que você me disse no dia que nos conhecemos, se lembra?

Wisengashi e Mizumi observam a cena com curiosidade e encanto.

- Como esqueceria? – Konichi responde terno. Nisso, Mayuki dá uma última olhada para o sapinho e o entrega para Wisengashi. Mizumi, com os olhos marejados e um sorriso bobo une as mãos numa pequena prece diante do testemunho de um antigo romance se reacendendo.

Satisfeito com os itens, Wisengashi “conversa” com cada um deles, sussurrando e pondo o ouvido sobre eles para ouvir suas respostas. Após parecer entrar num acordo com os objetos inanimados, os devolve satisfeito. – Pronto! Agora pelo resto de suas vidas, esses objetos concordaram em auxiliá-los no melhor que conseguem fazer, mas apenas quando o fizerem para ajudar aqueles que precisem de ajuda!

Mizumi parece impressionada com aquilo, mas para Konichi e Mayuki isso não significa muito, e ele não sentem muita diferença em pegá-los novamente a não ser o alívio de tê-los de volta. Pois sem saberem, aqueles objetos já faziam parte deles, e sem eles, se sentiam nus.

Finalmente Obayuki volta com o chá, tomando cuidado para não o derrubar e amparada pelos netos. Ela a entrega a Wisengshi que, por sua vez, pede a Mizumi que se sente.

- Acomode-se, minha querida, e beba cada gota deste chá! Lembre-se, respire fundo e não se incomode com o gosto!

Mizumi sabe o que o chá faz, pois já o tomou quando aqui e ali nas montanhas se machucava ou quebrava algum osso. Seu pai Haddan que colhe as ervas e seu outro pai Wisengashi que normalmente prepara o chá. Sabe que o gosto não é dos melhores, então o toma de um gole só.   

Para admiração da família de Obayuki, eles veem um verdadeiro milagre acontecer. Os ferimentos da ronin parecem se fechar em uma velocidade espetacular, e em poucos momentos, eles não passam de cicatrizes bem fechadas quando não somem completamente!

- Me sinto bem melhor, Wis-kun! – Mizumi fala depois de um suspiro gostoso, ela se apruma no catre improvisado e estende os braços para receber um abraço, no qual Wisengashi responde a abraçando afetuosamente.

- Essa é minha única ajuda que posso lhe oferecer, Mizumi-chan! Queria muito lhe acompanhar em cada passo de sua aventura, mas Haddan, aquele desalmado, me proibiu, dizendo que este é seu destino e não posso interferir! Ora, e seu eu interferisse, não seria também parte do destino? Barbudo bobo aquele! – Fala comovido e indignado Wisengashi.

- Não fale assim de Otochan6-Haddan, Wis-kun! Mizumi retruca num tom professoral. – Você sabe que no final das contas ele sempre tem razão.

- E isso não é ainda mais enervante? – Completa Wisengashi.

Mayuki não consegue conter mais a curiosidade e interrompe a cena de afeto.

- Chega disso! Você já está boazinha e pode andar com os próprios pés, e seu... Pai, companheiro... sei lá, não disse que temos pouco tempo? Ele também mencionou que eu e meu marido temos um papel a cumprir não foi? Que papel é esse? É perigoso? Afinal, que raios você veio fazer aqui?

- Eles precisam mesmo ir comigo? Vai ser perigoso e estou me sentindo bem melhor! – Pergunta Mizumi a Wisengashi.

- Foi o que Haddan disse, e você mesma não falou que ele sempre tem razão?

- Ora, às vezes, né? – Mizumi fala contrariada e depois se volta ao casal. – Sim, será perigoso, eu sinceramente não sei como você podem ajudar, mas meu objetivo são as ruínas do antigo castelo Higo... é lá que devo encontrar meu destino e interromper minha onda7.

- E como você pretende fazer isso? – Pergunta Mayuki.

- Bem... – Mizumi para a pensar. – Pensei em ir andando, né? – Fala sorrindo embaraçada – Posso tentar ir escondida ou correndo bem rápido... – Mayuki interrompe o vexame de resposta.

- Ou seja, você não sabe! HaHaHa! E pretende ir assim? DE JEITO NENHUM! Iriam lhe reconhecer num instante! Agora entendi por que somos necessários. Vou lhe arrumar de um jeito que nem seu “pai” aí vai lhe reconhecer! – falando isso se vira para seu marido, que estava desanimado sem saber seu papel - Konichi, ainda fala com o Higoi Sui, o magistrado?

- Falo sim. – De repente seu rosto se ilumina. – Vocês sabiam que só os homens do magistrado podem entrar nas ruínas, ou isso ou quem eles autorizam? Sei como eles se comportam, posso tentar passar a perna nos guardas e fazer a gente entrar lá! Mas o que eu digo? Pergunta Konichi para a mulher.

- Fale que está levando duas garotas para servirem Kora Keitarô no castelo a mando do magistrado, aquele moleque com certeza não vai recusar companhia feminina! – A fala de Mayuki faz Mizumi ruborizar e Konichi protestar.

- Eu não vou fazer isso com minha mulher!

- É só uma mentira, seu tonto, e você é ótimo nisso! – Retruca Mayuki.

- Não se engrace com ninguém lá! – Fala enciumado Konichi.

- Você vai junto, tonto! – Mayuki finaliza e olha triunfante para Mizumi e Wisengashi. Konichi pensa a respeito e dá de ombros – pode funcionar... não, vai funcionar! – pensa.  Nisso Mayuki olha nos olhos de Mizumi com intrepidez e fala.

- Viu senhorita Daminha Pequenina! É assim que dois camponeses vão ajudar uma ronin pé-rapada a conquistar seu destino! Agora vamos que vou nos transformar em irrecusáveis gueixas!

 

Glossário:

1 Geta: calçado tazaiano de madeira parecido com tamancos ou chinelos, mas elevados por uma ou duas traves de madeira na sola. São bem barulhentos e vistosos.

2 Texugo: Wisengashi é um Hengeyokai – ou seja, um animal que consegue se transformar num humano. No caso dele, ele é um Tanuki Hengeyokai, ou um Texugo homem, como ele disse. Dizem que esfregar os testículos de um Tanuki traz vários benefícios para prosperidade e fertilidade.

3 Metsuki: Pequena estatueta que pode ser de vários materiais que servem como adorno e presilhas para porta-moedas.

4 Kanzashi: São longos prendedores de cabelo que podem ser muito decorados.

5 Fundoshi: Roupas íntimas. Tipicamente um pano de algodão enrolado no corpo afim de cobrir as partes íntimas.

6 Ottochan: Papai, diminutivo de pai.

7 Interromper a onda: Ronin significa “Pessoa-onda”, ou seja, alguém que não para no lugar, como uma onda no mar. A expressão interromper a onda, significa basicamente deixar de ser ronin.