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segunda-feira, 8 de abril de 2024

A Campeã da Estrela do Norte - Parte 05

5 A Vitória da Montanha


 


Lá estava eu, do lado de fora da minha cabana, aguardando pela Delsenora. Minha mãe me fez luvas reforçadas, um novo cachecol e conseguiu para mim botas de escalada, raquetes de neve, uma faca afiada e uma cesta de coleta. Eu parecia uma coletora boboca sentada sem fazer nada. Decidi que, quando Delsenora chegasse, não facilitaria para ela. Estava pensando nisso, quando o grupo do Balder passou para pegar Leif para os treinos e começaram a rir de mim.

    -“HAHAHA! A Dermin desistiu de vez de ser guerreira e virou uma coletora tonta!”  

Riam e apontavam para mim. Eu me encolhi, vermelha de raiva e vergonha. Balder também ria, mas foi ele quem mandou todos pararem, e foram embora com Leif.

Já estava desatando a cesta, prestes a desobedecer à minha mãe e abandonar tudo aquilo, quando Delsenora chegou, com um sorriso amigável, toda empacotada como eu. Não pude deixar de notar o nariz e os dentes da frente tortos dela, mas mesmo assim ela parecia feliz em me ver.

    -“Nossa, Serena! Mas você está linda!” - Ela falou, soltando uns solucinhos.

    -“Vamos logo com isso!” - Falei, levantando-me demonstrando pressa, sem olhar para o rosto dela, apenas fazendo cara brava.

    -“Tem razão! Como é seu primeiro dia, estava preparando as outras garotas para incorporá-la na expedição, por isso a demora. Ansiosa?” - Ela falou animada, o que já estava me irritando.

    -“Eu só quero que essa boboquice termine!” - Falei na cara dela. Ela deveria reagir com raiva, mas não, só sorriu e falou animada.

    -“Ah, mas até o final do dia você muda de ideia!” - E virou-se, ajeitando o cesto de coleta e liderou o caminho saltitando. Olhou para trás e disse - “Vamos!” - Com um sorriso bobo, e voltou a seguir o caminho.

Fui atrás dela, ainda mais indignada. Ela é tão fraca assim? Por que não reage às minhas provocações?

Então, apertei o passo e me emparelhei com ela, olhando para ela com um misto de raiva e deboche, então resolvi dizer.  

    -“Gostou da ‘janelinha’ que lhe dei?” - Falei com um sorriso malvado.  

    -“Janelinha?” Ela pausou e percebeu minha maldade, arregalando os olhos ofendida por um instante, mas depois relaxou de novo. - “A isso não foi nada, já me acostumei. Não tá tão feio assim!” - Dessa vez, fui eu quem arregalou os olhos em surpresa.

    -“E o nariz torto?” - Falei, com mais alarme na voz do que queria.

    -“Nem dá para notar direito, e até parece uma cicatriz de batalha, então é legal, não?” - O que eu estava ouvindo?

    -“NÃO, NÃO É!” - Respondi com indignação na voz. - “Você não é guerreira! Você é uma menina que vai achar difícil encontrar um homem por causa disso!”

    -“Difícil, mas não impossível! Já notou como Lachdag me olha?” - Ela me falou, ficando vesga de excitação e dando uma mordidinha no lábio.

    -“Não, não olhei! O que estou olhando é uma louca sendo gentil com a pessoa que a desfigurou!” - Falei com raiva e mostrando um pouco de remorso na voz, me arrependi na hora.

Ela parou, assentiu para mim com um sorriso moribundo e com lágrimas querendo descer dos olhos disse.

    -“Quer que eu diga que estou com raiva de você, Serena?”

    -“Sim!” - Cortei ela.  

    -“Então sim, estou com raiva de você!” - Ela falou, franzindo pela primeira vez o cenho. Não sei por que, mas aquilo cortou meu coração. - Mas amo demais sua mãe, que sempre foi muito gentil comigo, e sempre lhe admirei pela sua bravura, beleza e força e acho que, apesar de tudo, vai valer muito a pena ter você como amiga!” - Ela falou, chorando, e eu estava lacrimejando também, e nem notei. Ela deu uma fungada forte e limpou o narizinho com a manga da túnica. - “Agora vamos?” - Perguntou, tentando recuperar o sorriso.

    -“Me promete que se você estiver com raiva de mim, você vai demonstrar isso!” - Eu falei. Ela sorriu de verdade dessa vez e disse. - “Nossa primeira promessa!? Sim! Sim! Claro que prometo!” - E deu pulinhos animados.

    -“Para uma louca, você até que ficou parecendo uma guerreira mesmo!” - Falei para ela satisfeita, apontando para sua cicatriz.

    -“O que foi que te disse? E essa não é nem a primeira, olha só!” - E começou a me mostrar cicatrizes e calos nas mãos, braços e pernas que ela ganhou nas coletas. Aquilo me impressionou de verdade.

Finalmente, chegamos ao campo onde as outras garotas nos esperavam. Fazia sol, e havia várias poças d’água, e as garotas pareciam conversar preocupadas quanto à água. Eram cinco, eu conhecia algumas por cima, como a irmã de Delsenora, a Deirtha, outras duas tinha visto aqui e ali, as mais novas nunca tinha visto.

    -"Ahem!" - Delsenora as interrompeu com um pigarro. - "Meninas? Dêem boas-vindas à nossa sétima coletora!"

    -“Nossa, ela é linda!” - Falou uma das que eu não conheço com olhões grandes azuis e cabelos pretos e grossos amarrados em duas tranças.

Deirtha, que parece uma cópia da Delsenora, mas muito mais baixa apenas me deu um sorriso falso e mau acenou, diferente de Delsenora, ela tem muita mágoa de mim. Ignorei.

    -“Essa é Serena?” - Falou a outra de olhos puxados e castanhos e cabelo curto com uma única trança. - “Eu achava que era um menino!”

    -“Não sou nenhum menino! Sou Serena Dermin, a sétima coletora!” - Eu me empolgo muito fácil.

    -“Pois bem-vinda, Serena!” - Falou uma menina que era alta, mas não tão alta quanto Delsenora, mas era bem mais larga, tinha olhinhos de raposa como a mais nova, mas o cabelo era bem maior, preso em um rebuscado mais prático trançado. - “Eu sou Alanaira, a irmã mais velha da Astrainne, que pensava que você era um menino!”. - Falou Alanaira brincando com a irmã.  

    -“E eu pensava que você nem existia!” - Falou de novo a mais nova dos olhões. - “Me chamo Bláthnat, mas pode me chamar de Nat! - Ela falou com um sorrisão.  

    -"Bem-vinda, Serena! - Falou a loira dos olhos azuis, magrinha mais forte que não tinha dito nada. - Me chamo Tegan!" - Acenei para ela. - “Delsenora, que tal explicar para a novata como iremos fazer para chegar nos arbustos hoje? O caminho está cheio de gelo!” - Falou preocupada.

    -“Eu não temo o gelo!” - Falei com imprudência, batendo a mão no peito. Tegan só fez rir, fazendo pouco, e eu não gostei.

    -“Podemos usar o caminho mais longo, pelas trilhas do leste. Está fazendo um bom sol, e podemos parar no platô e descansar lá.” - Falou Delsenora com sabedoria.
    -“É melhor que você faça a pena valer esse atraso, novata!” - Tegan disse, com tom provocativo.

    -“Ei! Vai valer a pena sim!” - Disse indignada Bláthnat, que gosta de ser chamada de Nat. - “Já valeu!” - Completou.  

    -“Eu sei me defender! - Censurei Nat. “Se eu atrapalhar muito, vocês podem me deixar para trás, eu não me importo!” - Falei com certidão, e Tegan só deu uma risada feia.

    -“Só abre a boca para falar besteira, não é novata? Se você fica para trás você morre.” - Eu bufei de raiva, não gostei mesmo dessa Tegan. Mas Delsenora retomou o controle.

    -“Ninguém vai ficar para trás! Como sempre fizemos, vamos no tempo da nossa mais fraca!” - Delsenora falou, e aí me dei conta: Elas acham que EU sou a mais fraca? Ah não, vou mostrar para elas que não é bem assim, nenhuma menina vence Serena Dermin, pensei. Pensei errado.

Estava determinada a mostrar a todas elas que eu não seria nenhum peso morto ou estorvo, muito pelo contrário. Que os exercícios e treinos que faço diariamente me fizeram bem mais competentes que elas em qualquer atividade física. Delsenora estava repassando para mim algumas instruções de quem vai subir com quem, que eu não estava prestando muita atenção tamanha era minha concentração em vencer elas.  

    -“Serena? Serena você está me ouvindo?” - Perguntou ela.

    -“O pior fica atrás de todo mundo e as três melhores vão na frente, entendi!” - Respondi animada.

    -“Não é bem assim! Eu, Alanaira e Tegan vamos guiando pela frente, Nat, Astrainne e Deirtha vão atrás e você vai atrás coladinha com elas para aprender tudinho, entendeu agora?

    -“Astrainne e Deirtha são mais novas que eu!” -  Falei indignada.

    -“Mas são mais experientes, olha, aprende tudo direitinho e tenho certeza que logo logo você estará com a gente guiando o grupo, não é excitante!?” - Falou soluçando de expectativa.  

Eu não gostei.

Nem me dei conta e já estávamos subindo a montanha, quer dizer, dando uma volta nela. Notei que o chão estava mesmo escorregadio e já fui instintivamente escolhendo onde eu pisava para não escorregar e não perder velocidade, aprendi isso com meu irmão Beladas. Isso parece ter impressionado elas, mas elas pareciam já saber esse truque, o que me deixou um pouco ofendida.  

Finalmente chegamos na parte oriental e começamos a subir.

    -“Fiquem atentas desde já porque já dá para encontrar Uvinhas e bagas! Mais no alto vamos ter arandos vermelhos, mirtilos almiscarados, ameixas de gelo e junipeiros!” - Falou toda animada a Astrainne.  

    -“Não vamos perder mais tempo colhendo esses arbustos comidos pelos bodes! Já perdemos quase toda a manhã e nossa descida já será perigosa sem isso!” - Alertou Tegan.

    -“Então vamos dobrar nossa velocidade!” - Eu disse animada e apertei o passo. As meninas mais novas riram animadas da minha ousadia, Astrainne e Nat até apertaram o passo comigo tentando me acompanhar.  

    -“Esperem! Não se afastem muito! Serena, melhor relaxar, você vai precisar de todo seu folego!” - A Delsenora tentou me aconselhar, mas não dei ouvidos, aquela subida estava fácil, eu descansaria quando chegasse na primeira inclinação.  

Nat e Astrainne ficaram para trás, suplicando que eu não saísse de vista. Não sou nenhuma maluca, claro que eu tinha todas na minha vista, mas queria mostrar que posso fazer uma tarefa fácil como aquelas em menos tempo que elas e foi exatamente o que aconteceu. Em poucos minutos cheguei na primeira inclinação da montanha, quando me dei conta elas eram pouco mais que pontinhos ao longe. Acho que exagerei um pouco, mas já estava feito. Só precisava descansar, porque acabei me dando conta que me cansei mais do que deveria. Mas como? Já corri mais rápido que isso e por duas vezes a distância e não havia me cansado tanto! Achei que foi a preocupação de não me afastar muito delas. De qualquer jeito me sentei, ou melhor desabei e fiquei esperando pelas retardatárias.  

Tinha até cochilado um pouco quando elas chegaram, quase meia hora depois. Fiquei esperta e plantei um sorriso triunfante no rosto.

    -“Finalmente chegaram! Por que demoraram tanto?!” - Eu me gabava.

    -“Aí está a imprudente!” - Disse Tegan. Elas não pareciam estar felizes, más perdedoras.

    -“Serena, não faça mais isso! Não podemos nunca nos separar! E se surgissem lobos ou mesmo orcs para te pegar? Como iríamos lhe proteger?” - Falou Delsenora me censurando.

Eu corei e por um momento não soube responder, eu estava tão ocupada pensando em vencê-las que esqueci alguns dos cuidados básicos de sobrevivência.  

    -“Mas não aconteceu nada!” - Me gabei de novo fingindo confiança. - “Não vamos mais perder tempo e vamos subir isso!”

    -“Nada disso, senta aí, coloca a cabeça entre as pernas e respira fundo antes” - Alanaíra disse.  

    -“Colocar a cabeça entre as pernas? Acha que eu sou um ganso?” - Retruquei ofendida.

    -“Hahaha! Não, não é nada disso, você tá tonta Serena, você está oscilando como uma bêbada.” - Alanaíra falou se divertindo. E agora me zanguei.

    -“Nunca fiquei bêbada, e olha que já acompanhei meu irmão em bebedeira! Vamos logo nos preparar porque não podemos descer no escuro!” - Falei repetindo o que Tegan havia dito mais cedo e fui até as meninas que estavam com os equipamentos de escalada. As meninas acharam melhor não me provocar mais, mas Delsenora pediu que Nat e Astrainne pelo menos me fizessem beber muita água.

E assim escalamos a primeira inclinação. Era uma das mais difíceis, pelo menos foi para mim, decidi seguir o plano da Delsenora e ficar por último, mas aproveitei para estudar direitinho como as outras faziam, em especial as três melhores. Delsenora é 3 Nightals mais velha que eu e duas cabeças mais alta! Ela tem pernas longas e fortes como reparei bem naquele dia, apesar dos bracinhos finos. Já Alanaíra é a mais velha de todas, com 16 Nightals, só não sendo a líder por ser muito tímida. Ela tem o corpo mais largo e mais forte do grupo. Tegan é só um ou dois Nightals mais velha que eu e tem o corpo bem distribuído, apesar de eu achar que sou mais forte. Deirtha tinha a minha idade e era um palmo maior que eu, mais era fininha como a irmã, Delsenora. Nat e Astrainne eram dois ou três Nightals mais novas que eu e eram meninas, mas lá estavam na minha frente mandando em mim.  

A bem da verdade a escalada estava bem difícil, estava tendo muita dificuldade de respirar, e bastante tonta, a inclinação parecia muito pior do que era, às vezes eu parecia estar de cabeça para baixo! Será que eu estava doente? Já escalei muitos muros, árvores e barrancos na minha vida e nunca havia me sentido daquele jeito!

Com esforço consegui acompanhar as meninas até o primeiro platô. Elas já estavam todas se decidindo se deveriam usar a trilha estreita ou escalar logo mais oito metros até o próximo platô. Se eu quisesse mesmo ultrapassá-las, eu tinha que parar de fingir estar bem e me cuidar.

    -“Ih, olha! A Serena está imitando um ganso!” -  Astrainne me dedurou apontando para mim e rindo, todas começaram a rir.  

    -“Não é para colocar a cabeça na bunda, Serena, é nas pernas, deixa eu te mostrar!” - Alanaíra fez pouco de mim e me ensinou como eu deveria me recuperar da tontura, me disse para respirar fundo e olhar fixo para o horizonte. Também me deu de comer e beber. Me senti bem melhor.  

Comigo me sentindo melhor e todas mais aliviadas, elas voltaram a discutir as vantagens e desvantagens de seguir a trilha e a parede, achei melhor tomar a liderança e mostrar para elas quem era Serena Dermin e comecei a escalar sozinha.  

    -“Não, Serena, nãao!” - Gritou chorosa Delsenora ao notar que eu já estava na metade da parede. - “Pare aí, vamos subir para lhe apoiar!” Ela suplicou.  

    -“Já estou quase lá! Quando eu chegar, fixarei já as cordas para facilitar para todas! -  Me gabei, e com isso tinha que provar minhas palavras, e dobrei meus esforços. As garotas lá embaixo imploravam para que eu descesse ou parasse, isso só alimentava meu impulso de subir, e estava subindo rápido! Cinco metros, alonguei o pé para evitar o musgo e me impulsiono para cima. Seis metros, cravo forte uma estaca e amarro já um gancho para segurança. Sete metros, prendo a respiração e me puxo inteira usando um galho para mais alto. Oito metros, se eu me alavancar usando o galho como base, consigo impulso bastante para já agarrar o platô e....  agarro uma poça de gelo que não vi, perco o equilíbrio nos braços e caio.

O susto me fez buscar por fôlego, mas não veio ar bastante e fiquei tonta. Eu estava lutando para ficar acordada e não conseguia nem pensar em como parar minha queda, caí por quatro, cinco, seis metros quando a corda de segurança que eu prendi me para. Fico pendurada feito faisão sendo defumado e vomito tudo que comi. Eu estava morrendo de medo de cair, mas mal tinha forças para me manter acordada. Os gritos de desespero das outras meninas me pareciam abafados, como elas estivessem no fundo de um lago... ou estava eu no fundo de um lago?

De repente me senti flutuando? Ou será que voava? Não sabia na hora se eu caía ou se afundava.

Só sei que sentia apenas frio, meu corpo inundado de suor em suspensão no meio de ventos e fluxos. Fechei os olhos. A montanha me derrotou.