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domingo, 30 de julho de 2023

Amor Doentio

 

A baronesa da Fortaleza Scaldmere raramente saí do castelo, pois sua saúde é frágil. Mas decidiu fazê-lo para parabenizar a filha, que faz 18 anos e se recusa a abandonar seu principal presente, uma égua de combate de poderosa linhagem.

Gillian Scaldmere apeia de seu poderoso cavalo negro de guerra ao avistar sua mãe a frente do castelo “o que ela faz aqui, no frio?” pensou ela. Sua amiga e amante, Sarissa, que cavalga ao seu lado com um cavalo branco, chama atenção para que ela amarre seus longos cabelos loiros, pois sua mãe não gosta que ela cavalgue com eles soltos.

- Mãe, que bom ver você fora do castelo! Mas está frio, vamos para dentro agora!

- Me cansei do castelo, meu anjo. Quero lhe parabenizar pelo dia e pedir que não fique brava comigo. – Retruca a mãe.

- Está febril? Por que ficaria brava com você?

- Vou me separar de seu pai, não é culpa sua. E acredito que será melhor para todos nós. Seu pai não precisará se preocupar comigo. E minha saúde melhorará no castelo de meu pai. – A mãe olha esperançosa para Gillian. – Filha, por que não vai morar comigo? Seria melhor para mim também, você cuidaria de mim e teria mais espaço para andar com seu cavalo! Além disso, ficaríamos mais juntas, e poderia lhe mostrar um truque ou dois de equitação.

- Mãe, está louca? – A filha pergunta em tom jocoso e preocupado. – Como aquela ruína de meu avô melhorará sua saúde? E eu ir com você? – Ela vira a cabeça e ri em deboche, estreitando os olhos azuis e felinos. – Só porque as terras de meu avô são um monte de nada, não significa que tenha mais espaço para meu cavalo! E equitação? Nunca vi você andar a cavalo na minha vida! – A filha passa a derramar remorso na fala. – Você nunca saiu deste castelo, está sempre doente, é obediente e submissa ao meu pai, nem parece uma Scaldcoste! Não comanda nada, não é obedecida por ninguém! Apenas esquenta a cama de meu pai, e vem me falar de fugir de casa e andar a cavalo como se a senhora tivesse minha idade? A febre afeta seu juízo agora?

A mãe baixa a cabeça derrotada, sua frágil pele branca cora de humilhação. – Tem razão filha, como sempre, me desculpe e feliz aniversário.

Quando a baronesa se vai, Sarissa toca o ombro da amiga. – Não foi muito dura, Gill?


- Talvez um pouco, vou falar com meu pai a respeito desta estranha conversa.

- Seria prudente? A bela moça negra de olhos dourados pergunta.

 - Ninguém ama mais minha mãe que meu pai.

A jovem relata a conversa para o barão Scaldmere, ao ouvir os detalhes da altercação, o barão Scladmere esfrega o queixo bem afeitado e pontudo e reflete preocupado. – Provavelmente é mesmo produto da febre, meu anjo. Fez bem em ter me contado, ela não deveria ter saído do castelo aquele dia.

- A culpa foi minha, pai. Ela saiu porque era meu aniversário, apenas os deuses sabem quanto tempo ela ficou me esperando lá fora! Deveria ter entrado e falado com ela.

- Tem toda razão, a culpa é sua! – Vocifera o barão mostrando uma máscara de pura raiva emoldurada pelos seus cabelos cor do sol. – Saiba seu lugar, garota! Seu aniversário é, antes de tudo, uma comemoração a minha virilidade, depois a fertilidade de sua mãe. Depois vem o jubilo dos camponeses pela sua longevidade e, por último, à sua saúde! Posto assim, você tinha que ver sua mãe!

- Me desculpe pai. – Responde Gillian humildemente.

- Me dê um beijo e vá a seus afazeres.

Na manhã seguinte, o barão chama sua filha.

- Anjo, sua mãe se foi. – Fala o barão com a voz quebrando carregada de tristeza.

- O que? – o que? – Como? Não pode ser!

- Pela manhã, a doença a levou...

- Não, meu pai, não pode ser, preciso vê-la! ...

- Os clérigos já começaram com os rituais da limpeza do corpo e da alma dela, você não pode vê-la, apenas no funeral.

Frustrada, a jovem parte em disparada do salão, monta no cavalo e galopa, pouco se importando se os camponeses têm tempo de se desviar ou não. A única coisa que pensa é nas duras últimas palavras sem amor que dirigiu a sua mãe...

O Funeral se dá no castelo Scaldcoste. Outrora importante, o castelo agora está com sérias necessidades de reparos e suas terras precisam de mais arrendatários para ser mais próspera. A família Scaldcoste são de primos dos Scaldmere, o avô de Gillian é tio de seu pai.

O funeral é solene e espartano, após o enterro, Gillian e seu avô, Bert, se encontram sozinhos. O velho de cabelos cinza puxa conversa com sua neta para matar o silêncio.

- Me dói ver sua mãe assim, sem vida. Ela era como você. Petulante e desobediente, mas livre, desimpedida, independente. Quando vi você chegando montada a cavalo, a frente dos guardas de seu pai e a frente do próprio barão Scaldmere, com este narizinho afilado apontando para o alto, pensei que via minha filha. Mas então me dei conta de minha idade e porque recebia, finalmente, a visita de minha filha e minha neta...

- Vô, não faz sentido, minha mãe em nada se parecia comigo, apenas a aparência mesmo. Ela era submissa e obediente, tadinha. Tão livre quanto uma delicada flor que precisa ser cuidada constantemente. Estou mais para um Gerânio. – Sorri triste da própria piada.

- Aí que se engana, minha neta! Sua mãe, posso arriscar, era muito mais teimosa que você, posso apostar! Não queria que ela cassasse com seu pai e a proibi de fazê-lo, próxima vez que a vi foi no altar com ele!

- Talvez isso tenha sida na juventude dela, meu avô. Quando casou pode ter se transformado em uma exemplar e tediosa senhora de terras. Ou pode ter sido quando eu nasci, se tornando uma tediosa mãe.

- Isso, você está certa. Com certeza foi quando se tornou uma esposa. – Retruca o conde Scaldcoste num tom rancoroso, enquanto olha para o barão Scaldmere. Sua neta percebe isso. – Mas estou já lhe tomando muito tempo! Vá Clare, vá ficar com sua amiga!

- Clare é sua filha, vô. Gillian fala com pena da senilidade do conde. – Ela está morta. Sou eu, sua neta. Gillian.

- Claro, claro. A cabeça do velho tomba dentro de suas grossas mãos, e ele soluça em tristeza.

Mais tarde Gillian fala da conversa que teve com seu avô. Reforça a senilidade dele, que a confundiu com sua mãe e que sugeriu que ela ficou doente com o casamento. Eis que o barão Scaldmere fala:

- Ele nunca gostou de mim, isso é verdade. Quanto a sua senilidade é de se esperar, vivendo num mausoléu solitário como aquele castelo. Quanto a sugestão dele, você já justificou, ele está ficando velho e senil. Já quanto você se assemelhar a sua mãe, sim meu anjo, ele tem toda a razão. Você tem toda a beleza de sua mãe.

Ao falar isso, o barão afaga o rosto e pescoço da filha com afeto desconcertante. Por um momento Gillian viu desejo inapropriado nos olhos de seu pai, como se ele a desejasse. Mas afastou o pensamento obsceno quando o seu pai retirou a mão de seu pescoço bruscamente.

- Fez bem em ter me contado isso, talvez tenhamos a razão do porquê nossos tributos serem tão parcos por essas terras. Com a morte de sua mãe nada mais protege a negligência dos Scaldcoste.

Três dias depois, Gillian soube que seu avô morreu em um acidente de pesca, no lago. Ele era um exímio marinheiro. É muito estranho que ele tenha dormido e seu barco virado.

Ela deixa as suspeitas de lado, ela tem muitas coisas na cabeça agora. Desde a morte de sua mãe, seu pai está cada vez mais interessado em tê-la por perto, a proibindo de fazer qualquer coisa que possa machucá-la. É ele agora que escolohe o que ela vai vestir ou com quem ela anda. Não vê mais Sarissa há três semanas... Ela torce para que isso seja apenas um comportamento de luto e que se vá com o tempo. Que seja mais cedo do que tarde.

Dia após dia o Barão Scaldmere poda cada vez mais sua filha de suas liberdades, há dias que ela passa inteiro sem ver o sol! Assim ela acabará doente... como sua mãe.

Em uma noite, seu pai exigiu que ela vestisse uma roupa idêntica a de sua mãe e fosse jantar com ele. Neste estranho dia ele a elogiou sua beleza de forma embaraçosa e chegou a lhe acariciar as pernas!

- Pai, este comportamento é inapropriado. Protesta Gillian tentando esconder o embaraço.

- Você tem que se acostumar com isso, Gillian. Você é uma Scaldmere e não há sangue mais puro que o nosso para continuar nossa linhagem. Fala o barão como se estivesse falando algo casual sem interromper as carícias.

Gillian não soube como reagir. Que tipo de conversa era aquela? Fora a sanidade de seu pai consumida pela dor de ter perdido sua esposa?

Ao terminar o jantar, o Barão deu uma última ordem a sua filha.

- Quero que me espere hoje em meus aposentos, querida.

- Não pai, isso é loucura! Sou sua filha, esqueceu? Não sou minha mãe!

- VOCÊ É O QUE EU QUISER QUE VOCÊ SEJA! Esbraveja o Barão, seu rosto alterado numa máscara maligna de fúria – Sua mãe ficou em meu caminho ao falhar em me dar um varão, e veja o que aconteceu com ela! Meu tio tentou envenenar sua cabeça contra mim, e veja o que aconteceu com ele! Ousa mesmo ficar contra minha vontade? Se me confrontas, saiba que posso forçar minha vontade em você quando eu bem aprouver! -  O barão Scaldmere se recompõe enquanto passa as mãos nos cabelos. E olha novamente para a filha, que está paralisada de medo, lagrimas correndo copiosas de seu rosto congelado pela revelação pavorosa.

- Lhe espero hoje em meus aposentos, não me questione ou lhe tomo aqui e agora.  Fala com uma frieza desumana.

Finalmente, tarde da noite, Barão Scaldmere se retira a seus aposentos. Seria neste dia que ele finalmente daria um propósito para sua filha. Porque não pensou nisso antes? Clare já era velha demais e já havia secado, não importasse quantas vezes ele a fertilizasse. Deveria ter se livrado dela antes e testado Gillian antes dela se tornar a maria rapaz que se tornou.

Chegando a seus aposentos, os encontra vazios. Então ela decidiu o desobedecer? O rebelde sangue Scaldcoste é forte nela, há, mas ele ia quebranta-la.

Na manhã seguinte Barão Scaldmere mandou seus guardas prenderem sua filha por desobediência, mas já era tarde. Ela não se encontrava em nenhum lugar. Nem no castelo, nem na vila.

Foi a primeira vez que Gillian desobedeceu a seu pai. Chorou copiosamente diante da situação desesperadora. Seu único plano era chorar até dormir e esperar que tudo não passasse de um pesadelo. O choro dela, no entanto, atraiu atenção de sua amante e amiga, que sorrateiramente veio a sua ajuda.

- Não pode aceitar assim essa sina, meu amor. Deve sair daqui enquanto pode!

- Mas para onde eu iria? Com a morte de meu avô, todos os demais lordes são aliados de meu pai!

Sarisse aquiesce. -É por isso que deve ir para o sul, para a terra dos Vales, lá seu pai e seus aliados não tem poder.

- Para os vales? Mas me matariam se soubessem quem eu sou!

- É por isso que deve ir de forma a não ser reconhecida e nunca mais usar o nome Scaldmere.

A ideia não agradava Gillian, pois ela teria que abrir mão de todas as regalias que estava acostumada, mas isso era melhor que a alternativa.

- Você irá comigo?

Sarissa baixa a cabeça entristecida. – Não posso, meu amor. Preciso ficar para me certificar de que seu pai nunca lhe encontre.

Gillian entende a lógica de sua amante, mesmo assim aquilo é intolerável, já ficaram muito tempo afastadas.

- Eu voltarei por você. Voltarei por você, voltarei por meu avô e voltarei por minha mãe. Se meu pai os matou, eu juro... voltarei para arrancar seu coração negro de seu peito!

Sarissa lança um sorriso triste para a amiga. -Só não faça nada precipitado, lembre-se de todas as lições que recebeu sobre guerra. Primeiro estabeleça-se, angarie recursos e aliados, conheça o inimigo e explore suas fraquezas.

-Não sou uma tola.

-Não é.

Nesta noite Sarissa cortou os longos cabelos loiros de Gillian os deixando curtos e desgrenhados, emprestou a ela roupas comuns suas. Gillain levou apenas o necessário e se armou de uma besta, alguns quadrelos e sua espada. As duas se esgueiraram para fora do castelo, onde Gillian montou em sua égua de combate e partiu sob a sombra da noite e sob o olhar vigilante de Sarissa.

Enquanto cavalga na escuridão seguindo as estradas secundárias sugeridas por Sarissa rumo aos Vales, Gillian pensa em seu pai.

Será que ele sempre fora assim? Nunca foi próximo dela, não deixava nada faltar a ela, é verdade, mas também a ignorava. Ela sabia que ele exigia a sua mãe por um filho homem, e seu distanciamento apenas a fazia se sentir culpada por existir. Se tornou excelente em equitação, arquearia e esgrima para que ele visse nela o filho que não tinha, mas nunca era o suficiente.

Tão desesperada ele a deixou por seu afeto, que traiu a confiança da mãe, traiu o amor do avô para enfim despertar o amor de seu pai... Esse amor doentio.

Voltaria sim, mas desta vez para tirar dele tudo que ele tirou dela, mesmo que ela precise se tornar uma selvagem dos Vales para isso. 


 

domingo, 23 de julho de 2023

A Dama da Espada, Parte Final

Apesar de todas as precauções, eles se certificam de que realmente estão a sós no corredor que leva até o santuário, como esperado, ninguém está lá e o caminho está livre. Por que seria diferente? Pois quem acompanha a garota é Date Masakane, e seus soldados não ousariam ir contra suas ordens. 


 

Antes de sair, ele se reuniu com seus subordinados e ordenou que eles usassem todos os homens disponíveis para reforçar as entradas e saídas, não sendo necessária a guarda de seus aposentos. Seus leais subordinados aceitaram suas ordens sem sequer pensarem duas vezes, o que prova a lealdade e confiança deles, mas também mostra a falta de iniciativa e imaginação, pois é sempre um erro deixar o comandante indefeso.

Com o corredor vazio, os dois caminham até os portões do santuário, a menina está abnegada, ele sente que ela ainda não confia plenamente nele, mas confia o suficiente para segui-lo. Gostaria que meus Chui¹ tivessem a esperteza desta garota pensa.

Masakane abre o portão sem fazer barulho e leva a Pequena Dama até a frente da gigantesca estátua de Raman ele a obriga a fazer exatamente o que fez da última vez. Ela reluta um pouco, mas o faz, cumprimentando a mão do raman², usando todo o peso do corpo dela para isso. A mão do raman cede, e sua barriga abre. Masakane afasta a garota da passagem e a observa, parece haver um túnel por trás. Ele pega uma lanterna do santuário e se prepara para entrar.

- Entre logo atrás de mim. – Masakane fala para a pequena Dama enquanto engatinha pela passagem até o túnel do outro lado.   

A barriga leva para uma caverna natural, com velhos adornos de corda e papel, como os encontrados em uma tumba ou santuário. Eles descem todo o caminho, que se nivela com a base do castelo, eles cegam em um ponto onde o túnel se abre em outra passagem em “T”. Se sente uma fraca corrente de ar à frente, mas a nova abertura chama atenção de Masakane pelo torii³ incrustado na seção. A garota insiste em continuar a frente

 – A saída é por aqui! - Ela diz insistindo e apontando.

Masakane pausa, “o que será que existe para além do torii, será a câmara mortuária desta caverna? ´

- É por aqui! - A pequena Dama insiste estridentemente enquanto tenta puxá-lo para frente. Está claro para Masakane que ela não deseja que ele investigue a nova câmara.

- Vamos investigar primeiro aqui. - Masakane fala enquanto puxa a criança com certa brusquidão.

A garota luta, claramente não querendo que ele vá, mas percebendo a inutilidade de seus esforços, desiste amuada.  O novo caminho abre para uma câmara mortuária, contendo vários hakas4, ou monumentos funerários. Junto às paredes, todos muito antigos. Logo Masakane entende que aquilo é a câmara mortuária ancestral da família Higoi, onde as cinzas dos primeiros Higoi devem descansar.

Chama logo atenção de Masakane as principais tumbas, ocupando a parede oposta à entrada. Lá ele nota a tumba de Higoi Omyuki, a matriarca dos Higoi, e logo à sua direita a tumba do filho de Kanpeki, Higo Munisai, que é adornada com uma estátua de pedra de uma carpa folheada a ouro. A carpa dourada dos Higoi – O mais interessante é que ela está atravessada por uma lâmina nua de espada, formando ironicamente o símbolo dos Higoi quando eles eram parte do clã Date quando a família se chamava Higo.

A lâmina é curiosa, pois está nua, não possuindo Tsuka5 ou tsuba6.

Masakane toca a lâmina para remover a poeira e examinar seu estado, O general não é nenhum amador em lidar com lâminas, ele sabe como examiná-las sem se ferir, inclusive como tocar e até mesmo apertar uma lâmina afiada sem se cortar, mas o mero toque na lâmina foi o suficiente para que ela mordesse seu dedo e tirar sangue. “Como isso é possível?” Ele pensa enquanto recua a mão no susto.

- Ela não é para você - A menininha fala em tom de advertência. 

Masakane olha a garota com desprezo e tenta novamente, agora com o cuidado de um amador cauteloso diante de sua primeira espada, cuidadosamente remove a poeira da parte de trás, do cume e do sulco da lâmina e mesmo assim se surpreende por ela ter arrancado pele de seus dedos.  O que será que está acontecendo? Como é possível uma lâmina ser tão afiada assim?” Ele pensa. Após o árduo trabalho de limpar uma porção da lâmina, nota que ela está em perfeitas condições embaixo da poeira e o artesanato... é inegável, é um típico trabalho de Gokusai, o armeiro pessoal de Kanpeki7! Ele está diante da lâmina Mizutamechi – dada por Kanpeki em pessoa para os Higo para elevá-los a condição de samurais séculos atrás!

Então é ali que a lendária espada se encontra? Desmontada, cravada em uma estátua e abandonada em uma cripta? É claro que não pode continuar assim, por isso Mazakane tenta remover com todo o cuidado a lâmina da pedra, mas não adianta, ela sempre tira sangue dele, e por conta da ausência de um cabo, não há forma segura de removê-la. Masakane tenta então usar a manga de sua roupa como uma luva improvisada para removê-la, foi um erro terrível, pois lâmina cortou o tecido como se fosse nada e acabou ferindo fundo sua mão. Ele xinga alto enquanto improvisa uma atadura para parar o sangramento.

- Já disse, ela não é para você! – A Pequena Dama repete com a voz carregada de ironia seu aviso.

Desta vez Masakane a ouve, e para a considerar como remover aquela lâmina em segurança. É bem possível remover ela com equipamentos adequados, é possível amarrar um barbante no buraco do encaixa da lâmina, e puxá-la para fora com uma polia, ou mesmo confeccionar um cabo para ela ali mesmo, mas fazer isso exigiria ajuda de terceiros, e com isso ele acabaria por revelar a descoberta para Ooshibu e se ele obtiver esta lâmina... se ele conseguir este símbolo ele se tornaria o senhor inquestionável da família Higoi e isso é inconcebível. Ele olha os olhos ofendidos da garota e lembra-se da lenda da espada Mizutamechi. Segundo a lenda, Mizutamechi foi uma espada desprezada por Kanpeki em sua juventude por ser tão afiada que ele próprio se feria com ela, sendo inútil usá-la em comparação a espadas mais convencionais. Porém, chegou o dia em que seu filho bastardo, Higo Munisai o desafiou para um duelo e ele teve que matar seu próprio filho. Arrependido, ele entendeu o segredo de Mizutamechi, e se tornou o único capaz de tocar a lâmina sem se cortar, porém ele teve que renunciar seu direito de tirar vidas. Ele morreu lutando em um duelo com esta espada, que acabou sendo trazida para cá, como presente aos Higo e finalmente elevando esta família ao estado de samurais. Dizem que Date Kanpeki tinha peculiares olhos azuis, diferente dos típicos olhos azuis claros dos descendentes de Yuye-no-kami, Kanpeki tinha frios olhos azuis escuros... como os da Pequena Dama. Será que os rumores estão corretos? Será que esta garotinha é a reencarnação de Kanpeki-sama? Havia um jeito de descobrir.

- Consegue remover esta lâmina daí, menina? – Masakane pergunta mais brusco do que gostaria.

- Meu nome é Higoi Muzumi, mas é Pequena Dama para você! – Fala ofendida a pequenina.

- Me perdoe, Pequena Dama – retruca Masakane com uma estudada reverencia. - Consegue tirar essa lâmina daqui?

- Sou muito fraca ainda. - Responde curta e grossa. A garota está começando a suspeitar das intenções do Date e está ficando arisca e não cooperativa. Ele precisa ser mais cauteloso.

- Entendo... – Fala ele fingindo humildade - Eu a manchei com meu sangue, seus ancestrais vão ficar furiosos com essa bagunça, pode limpá-la para apaziguá-los?

- Por que eu me importaria com isso? Eles estão com raiva de você e não de mim. – A garota está sendo difícil, mas Masakane previa isso.

- Justo, mas eu mesmo não posso limpá-la, você sabe disso, e por saber disso e não limpar você mesma, você compartilha de minha culpa. - Masakane termina o raciocínio enquanto oferece seu lenço para a Pequena Dama.

Como ele imaginou, a garota é esperta o bastante para compreender a lógica que ele criou. Ela faz uma careta e aceita o lenço. Anda até a estátua, onde sobe na sua base, com uma casualidade que vem da experiência – não é a primeira vez que ela faz isso – e começa a limpar a lâmina do sangue e da poeira sem nenhum problema ou perigo que ele encontrou, inclusive segurando a lâmina enquanto o faz, ela balança de uma forma natural ao seu manuseio, ela não sofreu nenhum acidente, mesmo não tendo todo o cuidado que ele teria para tocar uma lâmina afiada. “Ela conseguiria removê-la se fosse um pouco maior”. Conclui Masakane.

Assombrado com o que acabou de testemunhar, o comandante se perde em seus pensamentos. Ele não encontrou apenas um tesouro, mas dois! Se ela é mesmo a reencarnação de Kanpeki como ele acredita, ela combinada com essa espada é a senhora indiscutível da família Higoi e pode até contestar Kanpeki Yohiko – atual daimyo da família Kanpeki – à chefe desta família! E ela é apenas uma criança. Se ele conseguir controlá-la, vai sempre ter uma arma fulminante contra Ooshibu e seus descendentes, imagine o poder e prestígio que ele poderia alcançar se adotasse esta criança, melhor ainda, se casasse com ela quando ela chegasse na idade correta! As possibilidades são ilimitadas!

- Eu disse VAMOS!

A garotinha grita o tirando de seus pensamentos, ela já havia acabado seu trabalho e estava falando com ele há um tempo, mas, perdido nos pensamentos, Masakane não se deu conta.

- Já limpei a espada, agora cumpra sua promessa! Vamos sair daqui! – Ordena a Pequena Dama, sua voz retumbando autoridade, mas escondendo um choramingo do desespero. Ela imagina que o comandante Date tenha mudado de ideia, e ela está certa. Tudo agora mudou, ela é preciosa demais para ser perdida por um surto fútil de compaixão. E seria mesmo compaixão? Abandonando-a nas montanhas, ela teria uma morte tão ou mais cruel do que teria nas mãos do tio. Não, ele precisa mantê-la consigo. Ela pode retornar com ela até o quarto, reunir alguns samurais de sua confiança para contrabandeá-la até suas terras e cria-la em segredo até o momento certo chegar.

A garota não é nenhuma boba, ela já notou a mudança no coração de Masakane e o puxa com todas suas forças em direção ao corredor que o levará para a saída enquanto grita já choramingando com ele

- Você prometeu, lembre-se de seu juramento! Você prometeu! – Masakane pensa rápido em um argumento que poderá convencê-la de que ele ainda pretende libertá-la.  

- Sim garota! Prometi que lhe tiraria daqui, mas não será possível hoje! Lá fora, uma menina como você poderia ser facilmente recapturada – Um barulho, um estalo interrompe o argumento de Masakane o chamando atenção. Ele puxa rapidamente a garota para trás de sí que também se assustou com o barulho, e a manda ficar calada enquanto prepara-se para sacar sua espada enquanto observa a direção geral do barulho.

O estalo vem da parede da caverna, coberta por pequenas vinhas e musgo. Ele não se recorda destas plantas na parede. Os estalos aumentam, enquanto as vinhas e o musgo rapidamente crescem e se expandem na parede diante dos olhos do comandante Date. Masakane nunca foi um homem muito religioso, mas observar tão de perto um fenômeno obviamente divino é demais para ele, estarão os ancestrais da Pequena Dama furiosos com seus pensamentos ambiciosos?

O musgo e as vinhas param de crescer quando formam uma massa vegetal de formato oval, e do meio daquilo surge um ser... Um humanoide parecendo um homem pequeno, mas robusto, possuindo uma desgrenhada cabeleira preta que se mistura e se confunde com sua espessa barba. Ele veste apenas um simples robe, folhas e musgo salpicam sua pele. 

A criatura, apesar da aparência, emana um ar de serena autoridade que apenas kamis ou ramans conseguem emanar, ele olha nos olhos de Masakene e fala, mas não move a boca, fala diretamente na mente do comandante.

- Date Masakane, filho de Date Kyoko, você sabe, enquanto pensa no assunto que você contempla ir contra seu próprio destino, contra o destino dela e o destino desta existência. Ainda há tempo de voltar ao seu curso e não se condenar ainda mais do que o já fez! Seu primeiro pensamento, o de libertar a garota a seu próprio destino saiu dos pontos ainda puros de seu espírito. Eu lhe imploro, não corrompa o pouco de pureza que há em você e deixe-a ir comigo. Filho de Date Kosakune, seu papel neste capítulo está selado, mas não se preocupe, seu papel nessa história não terminou.

Com isso, o anão estende sua mão, esperando que Masakane entregue a garota.

O que é isso? Por que contra seu pensamento lógico ele sabe que o anão está correto? Por que ele guia a garota até a criatura e a entrega? Por que ele observa sem ação os dois entrarem no meio do arbusto na parede e testemunha a massa vegetal se fechar, definhando e morrendo atrás deles?

Não sobrou nada lá, eles desapareceram, ele perdeu para o próprio destino uma oportunidade que poderia mudar sua vida! Mas mudaria mesmo? O que ele seria se entrasse neste mundo de maquinações mesquinhas, trapaças e mentiras? Seria ele melhor que Ooshibu no qual ele tanto despreza? Masakane se apoia na parede enquanto busca por fôlego enquanto sua mente se preenche de medo e arrependimento. O que ele fez? Ele promoveu um ataque surpresa contra a ordem de seus superiores, depôs os senhores legítimos desta cidade, ceifou desnecessariamente tantas vidas, e ainda deixou órfã uma garota que poderia ser a resposta para o fim dos conflitos entre os Kôra e os Date, para que? Para satisfazer as ambições de uma criatura repulsiva em troca de um montante de tesouros e promessas de prestígio e glória? O que seu pai e sua mãe estão pensando dele dos assentos imaculados do Yomi? Como ele pode corrigir tudo isso?

A espada! A espada ainda está lá! Ele guardará a espada em segredo para quando chegar o momento a Pequena Dama, a sua Pequena Dama, se torne a Dama da Espada!

***

Após a batalha de Higo no Toshi, Date Masakane decretou que todos os sobreviventes que lutaram pelos Higoi de Higo, incluindo a Pequena Dama são traidores do Clã Kôra e devem ser tratados como tal se descobertos. Ele também decretou que todas as defesas do castelo Higo fossem destruídas e que este nunca mais fosse reutilizado como fortificação ou morada. Higoi Ooshibu jurou lealdade aos novos senhores Date e, graças a isso, Masakane recebeu o status de tesoureiro Date das províncias Higoi por recomendação do próprio Ooshibu.

O clã Date não ficou por muito tempo com as províncias Higo, já que Kôra Kabe, o senhor de todos os Kôra, marchava com um espetacular exército de samurais provados em batalhas no Fosso. Para evitar maior derramamento de sangue, os clãs Date e Kôra entraram em um acordo – A riqueza das províncias Higoi iriam ser todas repassadas para os Kôra e que a família Higoi junto com suas províncias retornariam aos Kôra com o fim da vida de Ooshibu.

Masakane se aposentou como samurai, raspando sua cabeça e se tornou um monge. Ele cumpria diligentemente os repasses das riquezas dos Higoi para os Kôra, enfurecendo ainda mais Ooshibu que as queria para si. Ele também manteve todos seus segredos, de seu envolvimento na conspiração e da localização do tesouro da Pequena Dama. Que permanece intocado por todos esses anos nas profundezas das ruínas do castelo Higo. Apesar de tentar viver o resto de suas vidas de forma sagrada, seus crimes e seus segredos nunca deixaram de corroer seu espírito.

***

Dez anos se passam e Mizutamechi continua lá, encravada no símbolo dos Higoi que adorna a tumba do primeiro samurai da família. Por dez anos ela esteve escondida pela escuridão das cavernas mortuárias, um facho de luz de lanterna finalmente afasta essa escuridão depois de tanto tempo, o homem que segura a lanterna, se posiciona admirado e solene na entrada da câmara, junta-se a ele uma mulher impecavelmente vestida como Maiko, mas com o mesmo olhar de respeito e assombro do marido.

A terceira mulher marcha até a espada encravada, lenta e decididamente. Sem nenhum titubeio, segura a lâmina nua com sua mão direita, que agora é grande o bastante para envolvê-la completamente. A temperamental lâmina é dócil ao toque de sua senhora, e com um puxão, a mulher a arranca do peixe de pedra. Quando a ponta da lâmina brilha a luz da lanterna pela primeira vez em séculos, as testemunhas sabem que a Pequena Dama é a verdadeira e legítima Dama da Espada.


 

O destino da vida de todos os Higoi está prestes a mudar.

 

 Glossário

1 -Chui: Tenente ou tenentes

2 – Raman: Raman foi um profeta oriundo da distante Sheeva que se tornou um deus, criando a religião conhecida como Ramanismo. Quando o Ramanismo chegou em Ryuu Tazai, acabou assimilando aspectos da religião local, por isso que em Ryuu Tazai há Raman, o deus-profeta (em maiúsculo) e vários ramans (em minúsculo), que são ancestrais venerados que morreram em honra.

3 – Torii – Torii é um arco que é sagrado tanto no Japão quanto em Ryuu Tazai. Normalmente feito de madeira, cruzar este arco purifica o espírito dos visitantes.

4 – Hakas são lapides de pedra normalmente esculpidos de forma bem vertical que marcam a localização das cinzas do morto.

5 e 6 – Cabo e Guarda mão

7 – Date Kanpeki foi o maior espadachim de todos os tempos de Ryuu Tazai. Dizem que no momento em que ele for novamente necessário, ele reencarnará para uma vez mais, lutar pelo Império.  

 

 

domingo, 16 de julho de 2023

A Dama da Espada, parte 10

 

Higo no Toshi – A Cidade de Higo, a pequena cidade pesqueira incrustrada entre vales e falésias tem esse nome por ser a casa ancestral da família Higoi, sendo os Higo os primeiros desta família. No ponto mais alto da cidade fica o castelo Higo.

Há muito tempo atrás, o castelo Higo era apenas uma casa cercada que pertencia a uma família de mercadores que trabalhavam para a vila pesqueira mais abaixo, vendendo os produtos deles para outras comunidades nas proximidades.

Graças à um débito de sangue que um famoso samurai tinha com a família, eles foram elevados ao status de samurais e a casa na colina se tornou uma fortificação e centro de poder da família.

Com o tempo, a importância da família cresceu, Higo no Toshi era pequena demais para acomodar as várias delegações diplomáticas e comerciais que os Higoi recebiam, então o centro de poder mudou para Kuboka, uma cidade maior no centro das terras da família. Mas o castelo Higo continuou sendo um lugar prestigiado, pois era a casa dos dada aos herdeiros mais capazes de proteger a família.

O último habitante do castelo Higo foi Higoi Muzubushi, todos imaginavam e torciam que ele seria o novo senhor dos Higoi, o apontamento dele como protetor do castelo Higo pelo seu pai era mais um sinal que isso aconteceria.

Mas as coisas começaram a ficar estranhas, boatos maldosos de que Muzubushi conspirava contra os aliados Date e usava a cidade isolada para realizar seus complôs começavam a circular, e os habitantes de Higo no Toshi já eram vistos com suspeita por estrangeiros que acreditavam nessas mentiras.

Até que o ataque Date aconteceu, de surpresa e sem aviso. Higoi Muzubushi e sua esposa Mayumi lutaram como leões, mas foi inútil, seus inimigos eram muitos.

Os Date declararam que todos os sobreviventes que não se renderam ou juraram lá mesmo lealdade a Higoi Ooshibu eram traidores, incluindo a Pequena Dama, que de alguma maneira conseguiu fugir naquela noite.

O castelo Higo foi abandonado, mesmo assim a própria população decidiu reforma-lo, principalmente o santuário interno e o quarto dos senhores e hoje ele serve tanto como uma lápide como um marco. Lá a população vai para honrar seus mortos e rezar por um futuro melhor.

Kora Keitarô é o primeiro habitante em dez anos do castelo. O petulante samurai fez questão de lá se estabelecer, o que enfureceu a população.

Mizumi, Konichi e Mayumi sobem para lá.

À medida que sobem, a parede de estacas a direita dá lugar a um despenhadeiro e a rocha natural à esquerda fica um pouco mais baixa. Nada do portão do antigo castelo existe, exceto as fundações de pedra de suas torres. Dois doshins estão postados na frente, eles parecem desanimados, mas saltam alertas ao notarem aproximação, mas se decepcionam com o que veem.

-Konichi-san! O que você e sua mulher estão fazendo fora uma hora dessas? Fala um tanto chateado um dos doshins.

-Olá, Yasuke-san, Matsu-san! Como estão?

- Aborrecidos. – Responde o outro doshin que atende por Matsu. – O magistrado saiu para proteger a cidade e nos deixou protegendo o encrenqueiro.

Konichi solta uma risada sem vergonha e responde – Foi você quem disse isso, e não eu! Kora-sama é nosso hospede de honra, não é?

- Estou louco para que esse hospede vá embora logo. – Retruca Matsu, Yasuke interrompe a conversa e pergunta.

- Mas enfim, o que fazes aqui furando o toque de recolher, Konichi-san?

- Sim, sim! Sui-sama achou que fosse uma boa ideia que minha mulher e minha prima entretecem nosso hospede um pouco, para distrai-lo de tudo isso e vê se ele deixa a cidade mais sossegada.

- Hm, não sei. Se Mayuki-chan conseguir aturar nosso hospede de honra então é mesmo uma boa ideia. Aposto que a ronin já fugiu daqui, Kora-sama deve ir atrás dela assim que se recuperar. – Responde Yasuke sem duvidar da palavra de Konichi.

- Kora-sama está muito ferido? – Pergunta Konichi querendo mais informações.

-Hai, hai¹! O nariz dele está bem quebrado, e o inchaço no estomago continua feio de se olhar. -Responde Yasuke.

- Entretenimento para Kora-sama... hmpf! – Grunhe raivoso Matsu. – Que Sui-sama tem na cabeça para ter essa ideia de entreter aquele estorvo?

- Entendo, entendo... Não foi minha a ideia, só fico feliz por minha mulher conseguir uma rendinha extra, né? Então, podemos entrar?

-É melhor esperar pela volta de Sui-sama para que ele confirme sua história, ou se Kora-sama aparecer por aqui e permitir a entrada de vocês. Não me leve a mal, Konichi-san, mas é difícil imaginar Sui-sama querendo fazer mais que a obrigação para aquele folgado.

Konichi ri com vontade, deixando os doshins até mais relaxados. – Ele disse mesmo que vocês iam duvidar, por isso ele me deu isso para provar... – Konichi entrega o tessen de Sui para Yasuke. – Sui-sama sempre foi um cara muito esperto, então não vou questionar a sabedoria que ele enxerga em apaziguar nosso convidado.

-Tem razão, é claro que não. Dozo²! – Fala Yasuke concedendo a eles a passagem.

- Mas não sairemos daqui. Vocês que se virem em encontrar Kora-sama! Fala Matsu um tanto grosseiro.

- Hai, hai! Obrigado, doshins-sama! Fala Konichi se curvando em respeito enquanto sinaliza para sua mulher liderar o caminho. E assim os três entram no castelo.

Eles cruzam o caminho do que foi um dia o pátio do castelo, as sombras das montanhas ao entardecer cobrem os buracos e escombros, as poças d’agua teimam em refletir os últimos feixes solares.

- Lembre-se do que eu disse, mocinha! Observe e imite tudo que eu fizer, pois lá dentro você não poderá usar essa sombrinha e estará desarmada, nossa passagem para onde quer que você precise ir lá dependerá de quão natural nós parecermos lá dentro.  – Fala Mayuki.

- Hm. – Assente obediente Mizumi. Ela não gostaria de se desfazer de seu boken, mas é um preço a se pagar pela entrada. Ela deposita a sombrinha no arco da entrada principal e segue adentro.

O interior do castelo não está tão diferente de como Mizumi se lembrava, escuro, vazio e silencioso. Ela se esforça para tentar se lembrar de momentos mais alegres que certamente houveram lá, mas tudo que vem a memória são os momentos da fatídica noite da invasão.

Uma doshin passa por eles, Mayuki delicadamente dá passagem para ela enquanto olha para o chão e curva a cabeça graciosamente, Mizumi faz o mesmo e Konichi faz do seu jeito. A doshin lança um rápido olhar curioso para o trio, mas está ocupada demais para pensar mais sobre aquilo.

- Para onde devemos ir a partir daqui, Mizumi-san? Mayuki pergunta.

- Preciso ir até a sala de Haman, eu devo cumprimentá-lo, mas não lembro onde fica.

- Ah! O santuário! Sabemos onde é, devemos subir para o segundo andar e pegar à direita, é um portão grande no final do corredor. -Fala Konichi, empolgado em ajudar.

Após aquela doshin, nenhum outro guarda apareceu, eles chegam até a escadaria e a sobem para o corredor do primeiro andar, infelizmente se deparam justamente com Kora Keitarô.

O garoto estava distraído, fungando e tocando delicadamente o nariz enquanto xinga baixinho, está usando apenas seu nagajuban³ e sandálias, quando ele levanta os olhos para o trio, ele se assusta tanto quanto eles, mas depois ele sorri malicioso, como se tivesse encontrado o que queria.

- O que fazem aqui no meu castelo? – Pergunta o jovem samurai. Mizumi desejou voar contra sua garganta pela presunção de chamar o castelo da vila “dele”, mas a mão de Mayuki apertando a barra de sua manga a lembrou de sua missão.

- Kora-sama! Vim a mando de magistrado Sui-sama trazer estas maiko para lhe entreter! Elas podem também aliviar suas dores! – Fala de forma teatral Konichi propositalmente omitindo nomes.

Então, Mayuki toma a liderança, e com um elegante floreio, fazendo uma reverencia para Keitarô. A contragosto, Mizumi também o faz, mas sem o mesmo animo.

- Entretenimento, hein? - Fala Keitarô rindo sozinho, esquecido das dores enquanto examina Mayuki afagando com uma mão seu braço. – Hm, muito franzina... – Ele procede a apalpar a mulher com as duas mãos, experimentando suas ancas, coxas e seios, mesmo a treinada Mayuki se incomoda com aquilo, não é de bom tom fazer isso com maikos! Ele não tem modos? Pensa. Konichi, não gostando do que vê, pigarreia.

- Senhor Kora-sama, a dama a sua frente é ótima curandeira, e também sabe tocar koto4 e shamisen5 como ninguém! Não precisa...

-Silêncio homenzinho! – Grita esganiçado Keitarô. – Ela é muito velha mesmo. Sabe fazer massagem, não sabe? Tenho um unguento que quero que passe na minha barriga, estou com muitas dores. Agora deixe-me ver a outra!

- Sim senhor! – Fala Mayuki sorrindo, mas um tanto cabisbaixa. Humilhada, ela dá passagem ao samurai, desejando que Mizumi tivesse seu pedaço de pau para explodir a cara dele, mas isso só pioraria as coisas. Desarmada o que ela podia fazer? Uma garota pequena como ela contra um bruto gigante como ele? Por isso olha firmemente para Mizumi para que ela se comporte.

MIzumi se esforça para não olhar para o homem, sabe que seu olhar pode ser o bastante para que ele o reconheça, mas a verdade é que ele está tão distraído pela surpresa que não reconheceria mesmo que ela o olhasse nos olhos.

-Hm, essa parece mais jovenzinha! – Fala excitado enquanto procede a examinar sem pudor o corpo de Mizumi, apalpando seus braços, peito e barriga. Mizumi abaixa ainda mais a cabeça para esconder o rosto e a raiva, morde o lábio para sufocar um protesto. Keitarô toma o ato como timidez e docilidade, o que o deixa ainda mais encantado. – Esta é muito mais macia! – Fala despudorado. – Muito bem, elas vão servir! Me sigam! – Fala enquanto volta pelo corredor que veio, certo de que irão segui-lo.

Os três se entreolham, Mizumi faz que não com a cabeça, claramente chateada com o encontro. Konichi não tira a razão dela.

- Deve haver outro jeito. – Konichi fala.

- Sim, podemos despistar um bobão desses. – Mizumi fala amuada. Mayuki tem outra opinião.

 - Vocês estão loucos? Não perceberam o cheiro de bebida e o derrotismo? Ele provavelmente acha que você conseguiu escapar e deve estar se embriagando para afogar a humilhação, mocinha! Se fugirmos agora, ele no mínimo irá nos perseguir por puro ódio! Você pode até conseguir fugir, mas e nós? Nossa vida é aqui! Não e não mesmo! Vamos seguir com isso. Bêbado como está ele dormirá logo e podemos seguir até o santuário, assim ele não suspeitará de nada!

-Não sei se vou suportar ver aquele homem lhe tocar novamente... – Fala Konichi com uma coragem atípica.

- Não – Fala Mizumi balançando a cabeça – Não permitirei que ele toque Mayuki-chan também. Deixe que eu suporto os beliscões e tapinhas dele, não seria a primeira vez que fazem isso comigo. – Fala Mizumi conformada.

- Tem certeza, mocinha? Eu também não me importo de receber uns amassadas de um bêbado!

- Não, tudo bem, ele se interessou mais por mim... -Mizumi solta um risinho. – É até irônico isso, pela manhã ele tentou arrancar minha cabeça.

Nesse momento, Keitarô olha para trás e grita. – Vão ficar parados aí? É por aqui eu já disse!

Os três concordam em segui-lo.

Keitarô os leva até o quarto dos senhores, no segundo andar, no caminho Mizumi conseguiu vislumbrar o portão do santuário. Paciência, é preciso lidar primeiro com esta situação.

O quarto dos senhores tinha sido transformado em uma espécie de ofertório, mas que agora também possuía um futon, escrivaninha, apetrechos de escrita, uma caixa de remédios, bebidas e os pertences pessoais de Keitarô. Ele entra no quarto e se senta imponente, sinalizando para que os outros juntem-se a ele, Konichi senta junta a porta e tenta se fazer invisível, Mayuki vai até a caixa de remédio e começa a preparar os unguentos, Mizumi fecha a porta com cerimonia e ia se sentar mais afastada, quando Keitarô interviu.

- Oba-chan6, me disseram que você toca shamisen, não é? Pois pegue o instrumento e deixe a bonitinha passar o unguento!

Mizumi e Maiyuki se entreolham, mas decidem acatar. Mizumi termina o preparo do unguento enquanto Mayuki pega o shamisen, se sentando um pouco afastada e começa a tocar, cantando uma música de sua infância. Keitarô abre seu juban e começa a desenfaixar seu ferimento, gemendo baixinho de dor enquanto o faz, Mizumi nota que está bem inchado e roxo, mas ele iria viver. Ela senta à frente de Keitarô, com o pincel embebido com o unguento pronto, quando ele a puxa para si a pondo ao seu lado e fala malicioso. – Passe com as mãos.

Mizumi faz que sim cabisbaixa, escondendo a breve careta e, obediente, começa a aplicar o unguento com as mãos nuas. Keitarô solta uns grunhidos mistos de dor e prazer enquanto afaga o ombro de Mizumi com seu braço direito.  Mizumi decide então explorar o ferimento de Keitarô.

- Ite7! – Grita de dor Keitarô quando mizumi aperta seu ferimento com os dedos.

- Sumimasenn8, samurai-sama! Sou muito desastrada!

-Só tome mais cuidado, mulher!

Após mais dois apertões, Keitarô decide que é melhor ele mesmo enfaixar o ferimento quando ela termina, pedindo que ela lhe sirva saque enquanto ele o faz. Mizumi acata, servindo uma generosa taça de saquê.


- A primeira boa ideia de Sui foi trazer você aqui, garotinha. Vou precisar de uma boa diversão e um descanso para amanhã. A maldita ronin que me humilhou não deve estar muito longe! Aposto que a cadela imunda deve estar jogada na estrada cansada e ferida quando eu a encontrar. Mas desta vez não serei tão piedoso, deixarei ela nua para não inventar coisas, e cortarei a cabeça dela neste castelo para todos dessa vila estúpida assistirem! Vão se arrepender por terem caçoado de mim!

- O que ela fez de tão errado, samurai-sama? – Mizumi arrisca perguntar afinando ainda mais sua voz.

Keitarô empertiga e chacoalha Mizumi pelo ombro ofendido com a pergunta, vendo que ela se encolheu inteira, ele sorri satisfeito e responde.

- Não se pode esperar inteligência desse rostinho lindo, hein? A imunda é uma traidora do clã, e isso basta. Os Date a odeiam e tenho certeza que receberei um bom posto como magistrado quando eu a matar.

- Você já a perseguia, samurai-sama? Ela parece perigosa. – Arrisca Mizumi.

Keitarô sorri orgulhoso e fala. – Já sabia que a cadela cedo ou tarde voltaria para cá, estou atrás dela desde que ouvi falar de suas ações em Orimaki.

Mizumi fica assombrada com o que ouviu. Ela utilizou o nome Kaeda em seu trabalho na cidade de Orimaki9, como ele sabia que Kaeda era Mizumi? E se nem ela sabia que viria para Higo no Toshi, como ele sabia? Ah não ser que tenha sabido através do senhor Higoi. Ele também mencionou os Date... será que foi ele? Só ele poderia saber da importância de Higo no Toshi para ela, mas porque ele faria isso?

- Ficou tão quietinha de repente, meu pêssego. – Fala Keitarô puxando-a para praticamente seu colo enquanto a envolve com os braços.

- Samurai-sama, ainda é cedo, vamos beber mais... – Mizumi protesta, mas isso faz com Keitarô avance mais fazendo-a derrubar a garrafa de saquê. Ele afrouxa o obi da moça com um puxão enquanto apalpa seu peito com a outra. Talvez seja possível controlar ele para que ele fique só nessa, depois é só o convencer a beber mais um pouco e se livrar disso. Mizumi pensa.

- Você é tão musculosa embaixo dessa gordurinha gostosa! Lembra uma carpinteira que serve minha irmã no Farol de Pedra, uma coisinha como você, pequena e macia, mas com músculos embaixo... gemia como um esquilinho! – Ao terminar de sussurrar no ouvido de Mizumi começa a beijá-la, sua mão massageando o peito da garota de forma mais rítmica.

- C-conte-me mais sobre ela, samurai-kun... – Mizumi grune incomodada com os apertões de Keitarô, mas ele confunde com um gemido de prazer e começa a forçar sua mão esquerda por entre as pernas da ronin disfarçada de maiko.

- Samurai-sama, aí não! - Mizumi protesta, mas não obtém resposta, Keitarô agora geme enquanto a mordisca e a beija, seu braço direito agora massageando todo o peito dela enquanto força o seu esquerdo entre as coxas da garota. Mayuki para de tocar, e Konichi prende a respiração. Mizumi entende que está em desvantagem e precisa agir. Ela decide ganhar um pouco de controle conduzindo o posicionamento dos corpos. Se inclina para a frente dando a nuca para Keitarô, este aproveita o movimento para finalmente enfiar a mão por entre as pernas da ronin e afagá-la. Mizumi solta um gemido fingido enquanto posiciona suas mãos para controlar as dele, e se inclina um pouco mais para frente, levantando um pouco seu quadril. Keitarô vê naquilo um convite e se inclina para envolvê-la, dando uma pequena folga entre si para levantá-la pela virilha ela solta um gemido alto, e de repente o rosto dele explode em dor intensa.

- Sumimasenn, samurai-sama, deixe-me ajudá-lo! – Fala Mizumi após a dura cabeçada, imitando uma vozinha afetada enquanto salta de pé e se posiciona nas costas de Keitarô, que, muito preocupado com seu nariz que se abriu novamente em uma torrente de sangue, não suspeita de nada.

- Cadela burra! Você quebrou meu nariz... De novo! – Keitarô fala se referindo ao fato de seu nariz ter sido agora quebrado duas vezes no mesmo dia, mal sabe ele que a assertiva de que foi a mesma pessoa que o fez também é correta. Sem saber o que fazer, o grande samurai segura seu nariz numa tentativa de parar o sangramento. Ele notou Mizumi indo para trás dele e tem esperanças de que ela vá fazer algo para ajudá-lo.

Konichi e Mayuki se recolhem nas sombras enquanto olham Mizumi agarrar as golas do juban de Keitarô enquanto praticamente se deita nas costas dele, dobrando os braços enquanto se mantem segurando o quimono e finalmente torce as golas as puxando e cruzando contra o pescoço do jovem. O fato dela estar deitada sobre Keitarô não deixa nenhum espaço para ele se soltar. Sentindo a sua garganta fechar violentamente, Keitarô finalmente entende que está sendo atacado.

- Maldita! É você, não é? A imunda ronin traidora! – Keitarô fala com uma força reserva impressionante, enquanto se levanta urrando em fúria, quase fazendo Mizumi cair, mas ela está agarrando firme nas golas cruzadas, o que faz apenas com que o apertão se acoche, Mizumi sabe que se Keitarô não conseguir a reverter por cima, ele nunca escapará do enforcamento nami juji jime10 e que enquanto ela estiver agarrando as golas cruzadas as tentativas de escapar vão apenas agravar o sufocamento. Em seu desespero, Keitarô não se deu conta disso, então Mizumi decide controlar melhor o sufocamento para não acabar matando o garoto acidentalmente.

Com um urro, Keitarô se joga no chão de costas, esmagando Mizumi contra o chão e seu corpanzil. Mizumi grunhe de dor, mas não larga as golas, as segurando como uma doninha segura sua presa em sua mandíbula. Ela aproveita que a queda foi tão ruim para ele quanto para ela e enlaça as pernas no abdômen de Keitarô enquanto ele se recupera.

Keitarô se levanta desesperado, suas mãos arranhando os braços de Mizumi num esforço inútil de retirá-la, as tentativas de respirar do jovem são fúteis e ele não tem ar suficiente para continuar de pé por muito tempo, ele cambaleia e se joga desta vez contra a parede, mas Mizumi estava preparada para o impacto. Ele então começa a puxar os cabelos de Mizumi e socar sua cabeça. Mizumi responde chutando seu ferimento no estomago com sua perna direita, fazendo o pouco folego de Keitarô se dispersar mais rápido ainda. Keitarô tenta mais uma trombada contra a parede e desfere um grande soco contra a cabeça da ronin que continua torcendo suas golas com força, e desferindo chutes, mesmo com toda a punição.  

Keitarô, já sem folego começa a jogar seus braços inutilmente para os lados, seus olhos se esbugalham e começam a rolar para cima, sua boca aberta buscando por ar enquanto baba escorre para fora e sangue de seu nariz para dentro. Finalmente seus braços pendem ao lado de seu corpo sem força e ele tomba de joelhos. O jovem solta um ininteligível pedido de clemencia ou de socorro antes de finalmente cair de cara no chão. Mesmo tendo sido espancada e toda descabelada, Mizumi continua a apertar as golas cruzadas do samurai caído com força, até ela não sentir nenhuma luta em Keitarô e depois por uns segundos a mais para ter certeza, finalmente o soltando.

Toda desarrumada, Mizumi se senta sobre o corpo inconsciente de Keitarô enquanto estapeia a sua cabeça. – Dessa vez continue caído, samurai-sama. – Ela fala com uma cortesia carregada de ironia para seu oponente caído.

Após recuperar o folego, a ronin recompõe suas roupas e enrola seu cabelo num laço simples e fala para seus aturdidos companheiros.

- Nee11? Acho que no fim acabou tudo de acordo com o plano, heim? Ele está dormindo, e agora podemos partir, né? – Fala Mizumi com jovial bom humor. Aliviado, Konichi rí como um maníaco e Mayuki esconde o risinho com a manga. Só espero que isso não recaia sobre nós. Pensa Mayuki com assombro, mas não ousa reproduzir seu medo em voz alta.

Eles então saem do quarto dos senhores, se certificando de que não há ninguém nos corredores, fecham a porta com a cerimônia apropriada, e sorrateiramente vão até o portão do santuário interno.

 

1 – “Hai” é “sim”, então “hai, hai” é “sim, sim”.

2 – “Dozo” é usado para conceder ou permitir uma ação, algo como “por favor” ou “faça as honras”.

3 – nagajuban ou simplesmente juban é o robe que tanto japoneses quanto muitos tazaianos usam como roupas de baixo. Obviamente não é de bom tom sair por aí vestido apenas com isso.

4 e 5 – Koto é um instrumento musical de cordas dedilhadas semelhante a uma grande citára enquanto o shaimisen também é um instrumento de cordas que é tocado de forma similar a um banjo.

6 – Oba-chan é vovó. Pode ser usado de forma carinhosa ou grosseira, dependendo do contexto.

 7 – “Ite!” significa “ái!” ou “tá doendo!”.

 8 – sumimasenn – perdão, me desculpe.

9 – Perdido? Orimaki é uma cidade não muito longe de Higo no Toshi, ela é dominada por dois chefes de quadrilha, ou oyabuns. Um se tornou magistrado da cidade após ambos terem entrado em guerra por poder. Mizumi foi contratada como mercenária por um deles nesta guerra.

10 – Técnica do Jujutsu, o ancestral do judô e do Jiu-Jitsu, que consiste enforcar o oponente cruzando as golas ou outro tipo de abas do traje contra o pescoço do oponente. Até hoje é uma das técnicas mais eficientes do Judô e Jiu-Jitsu modernos. Conhecido como Sufocamento em Cruz, ou “Cross Choke”.

11 – expressão que dá ênfase para a sentença. Mizumi é viciada em usá-la, característica de sua criação caipira.