Como todos sabem...

Licença Creative Commons
Todo o conteúdo escrito deste site é obra de Igor Lins e é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A Campeã da estrela do Norte, parte 03

3 A Sombra da Montanha 



Não posso dizer muito sobre como foi a batalha que finalmente expulsou Feanurd do Lago Congelado, pois não participei dela. Eu só posso dizer que estávamos sem nenhuma esperança, a tribo parecia um fantasma de sí mesma, e algumas famílias começaram a debandar, achando que era o fim. Para piorar, o inverno foi muito difícil e havia pouca caça e coleta – todos diziam que era porque Elrem não mais nos protegia. Sem falar que Feanurd e seu bando nos perseguia e nos solapava. Se não fosse Elenira e suas guerreiras, não haveria ninguém para segurar a moral. Gweshen tentava, mas ninguém acreditava nela, nem em Themrim, até que em um dia, Themrim e Gweshen apareceram com essas armaduras de escamas, e Themrim disse que Elrem havia aparecido em sonho para ele e dito que estaria sempre protegendo a tribo da Grande Serpente. Como prova, deu a ele e a Gweshen aquelas armaduras de sua própria pele, que os protegeriam de todo o mal.  

Se foi mentira ou não, funcionou. Estávamos tão desesperados por alguma esperança que decidimos acreditar naquilo. Rapidamente a notícia se espalhou e começamos a nos reunir novamente.  

Elenira teve a ideia de levar toda a tribo para o Portão da Ferida do Mundo. Essa região se chama assim porque é um vale montanhoso que é muito bom no verão porque ele se enche de arbustos frutíferos e sem falar que dá acesso direto ao mar e aos civilizados do sul, como Portal de Bheorunna e Luskan. O ruim é que o verão lá é muito curto, e quando ele passa, o lugar é muito perigoso exatamente por conta dos worgs e dos gigantes. Mas Beladas me explicou por que era uma boa idéia: 

Se chegarmos lá, podemos colocar toda a tribo em segurança do outro lado do vale e chamar Feanurd para lutar em um passe facilmente fortificável. Ele estando tão perto de casa vai preferir fugir a ficar e lutar. 

Apesar de Gweshen não gostar de Elenira, ela entendeu a ideia e foi para lá que fomos.  

Não ví a luta, estava cuidando de Leif que tinha ficado doente, e não podia ver nem se eu quisesse. Mas soube por todos que meu irmão Dounir foi muito importante na expulsão de Feanurd. Nós conseguimos tombar três gigantes e vários worgs. Sofremos muito, mas conseguimos.  

Depois ele Beladas e meu pai marcharam ao lado de Gweshen para punir os assassinos de Elrem e Bardawulf. No fim, os traiçoeiros Corvos Negros haviam dito para um grupo de invasores do sul que Elrem estava desprotegido. Esses invasores mataram Elrem e emboscaram Bardawulf antes dele ter a chance de chegar no conselho com os Corvos Negros.   

A vingança contra os invasores e contra os Corvos Negros foi menos perigosa do que a luta contra Feanurd. Vínhamos com vingança, vínhamos com ódio, vínhamos achando que nada poderia nos derrotar, pois havíamos acabado de derrotar gigantes. Mas a verdade é que os Corvos Negros não queriam lutar e foram perdoados por Gweshen sob a condição deles nos ajudarem contra os invasores e pagarem em madeira, comida, peles e todos os prejuízos que fizeram.  

Os invasores só queriam mesmo roubar o tesouro de Elrem e fugiram assim que viram os Corvos Negros e a Grande Serpente unidos contra eles.  

Matamos muitos enquanto eles fugiam, e os Corvos honraram sua palavra no final.  

As lutas demoraram quase um ano, e sofremos, nos dividimos e quase acabamos nesse tempo. Mas sobrevivemos e conseguimos superar nossos inimigos no final. Mas então, quando as lutas acabaram, Gweshen Mão de Ferro expulsa as Guerreiras da Estrela do Norte da tribo e Elenira aceita a decisão sem reclamar, eu tinha 12 Nightals quando isso aconteceu e me lembro de ter ficado com muita raiva de Gweshen por isso. Elenira e as guerreiras haviam feito muito por nós e eu não estava sozinha na minha raiva, vários também acharam uma injustiça.  

-    É injusto, mas foi melhor assim. - Minha mãe me disse certa vez.  

-    Por quê? Elas deram seu sangue, seu suor e suas vidas para nós ajudaram, estavam conosco lado a lado, escudo a escudo em todas nossas batalhas e Gweshen as traí desse jeito só porque o pai dela gostava de Elenira? Isso não faz nenhum sentido para mim! - Eu falei com o sentimento de raiva apaixonada. Eu admirava muito Elenira e as Guerreiras de Gwynharwyf, ainda admiro.  

-    Não fale assim de nossa chefe, Serena! Imagine se seu pai me trocasse pela Lorna ou pela Pelah, você ia ficar feliz? - Lorna e Pelah eram duas mulheres que gostavam do meu pai antes mesmo de eu ter nascido. Quando meu pai voltou das batalhas, a Pelah chegou a jogar uma guirlanda de visgo para meu pai pisar, minha mãe olhou furiosa para ela e ela saiu correndo. 

-    Meu pai nunca lhe trocaria por aquela bruxa ranhenta! E a mãe de Gweshen está morta! - Comentei. Não sei se Pelah é bruxa, mas ela nunca se casou e mora isolada fazendo roupas e cestos para sobreviver.   

-    Se eu morresse você se esqueceria de mim? 

-    Claro que não! 

-    Nossa senhora não esqueceu a mãe dela também e sofre com a ideia de que seu pai a tenha esquecido. 

Não sabia o que responder. Então fiz uma cara feia. 

-    Isso não vai durar para sempre, minha guerrerinha. Um dia em breve Gweshen irá superar seu luto e perdoar Elenira e as outras.  

Minha mãe só não contava com o orgulho de Gweshen. 

É claro que enquanto tudo isso acontecia, não houveram mais jogos de Senhores de Guerra, mas então com o fim das batalhas e a volta da normalidade, a trégua acabou.   

Dounir não participava mais do jogo pois tinha 17 Nightals e era um guerreiro, Beladas, com 16 anos, já um guerreiro também, só participou mais algumas vezes, as últimas vezes por nossa insistência, mas acabou parando, só sobraram eu e Leif de Dermin no jogo.  

Como eu não conseguia atrair ninguém para liderar porque ninguém ainda me levava a sério e nem Leif, porque ele ainda era pequeno, o grupo Dermin acabou e permaneceu assim por dois anos. Porém os territórios os territórios ainda eram Dermin, e era necessário pedir permissão para um Dermin para usá-los.  

 Como Dounir e Beladas tinham deixado os territórios para mim e Leif, os outros grupos tinham que pedir permissão para nós para usar o forte ou a caverna. Então, um garoto de 14 Nightals chamado Balder que liderava o grupo do Machado de Guerra vinha pedir permissão para Leif para usar o forte do toco velho. Em troca, Leif entrava no grupo dele e não fazia nada a não ser “cuidar da bandeira”.  

O grupo do Balder era o mais forte de todos e ele era um dos meninos mais velhos que ainda brincavam de território mas ele não me chamava, porque eu era menina, porque ele tinha medo de me machucar, porque ele me achava delicada demais para aquilo. Eu achava muito injusto, porque eu fazia questão de arrumar o forte do toco velho, eu trocava as madeiras velhas e entalhava as escadas, eu refazia as amarras e ensinava ao Leif a fazer o mesmo. Com ajuda de Beladas, eu fazia o mesmo na caverna do lago congelado – mas não, eu era muito delicada para lutar.   

 Depois de um tempo impedida de jogar, cansei disso e fui confrontar Balder, ele e seu grupo estavam combinando com o outro grupo as regras do jogo daquela tarde. 

-    Balder! Quero que vocês saiam daqui, pois eu e Leif vamos tirar o gelo da escadaria do forte! 

-    Não precisa não, mulher! Um gelinho não vai atrapalhar ninguém. -  Ele falou isso sem nem olhar para mim.  

-    Nunca ouvi tanta bobagem junta! - Eu respondi rindo. - Pessoas podem morrer se escorregarem e caírem no gelo! 

-    Meninas bobas e atrapalhadas podem morrer se caírem e escorregarem no gelo! - Ele respondeu e seu grupo riu de mim.  

-    Eu como uma Dermin não permito que vocês usem o forte do toco velho! - Falei vermelha de raiva e bem alto.  

-    Balder me olhou muito contrariado, como se estivesse decepcionado ou confuso, eu nunca soube ler direito a cara dele porque ele fica todo bobo na minha frente. Mas finalmente ele parou de gaguejar e perguntou para Leif. 

-    Leif, você é do meu grupo, não é? 

-    S-sim! - Leif respondeu com vergonha de olhar para mim. 

-    Você como um Dermin permite que usemos o forte? 

-    Sim. - Respondeu meu irmãozinho ainda sem coragem de olhar nos meus olhos indignados. Derrotada eu supliquei. 

-    Deixe-me entrar para seu grupo!  

Ele olhou para os outros que estavam rindo de mim e balançou a cabeça numa negativa. 

-    Responda com palavras, seu covarde! - Falei já com os olhos marejados. Ele me olhou com fúria e gritou. 

-    NÃO mulher, vá embora!  

Desesperada para brincar participar e não sair humilhada apelei para o outro grupo. 

-    Couldourn... Ele não me deixou nem começar. 

-    Não precisamos de meninas choronas e remelentas para nos atrapalhar! 

E todos riram, não aguentei e comecei a chorar muito e saí correndo para esconder a vergonha, eles riram mais alto. Anos depois Leif disse que também riram dele porque ele chorou por mim, Blader disse mais tarde que se envergonhou muito de ter feito aquilo comigo, mas não podia mostrar isso para os outros.  

Eu não era uma jogadora ruim, todos eles sabiam disso. Eu havia treinado luta com os mais fortes jogadores, Dounir, Kant e Beladas e costumava vencer muitos meninos, inclusive Balder e Couldourn com força e esperteza, e os meninos odiavam perder para mim, por isso estavam sendo agora cruéis comigo. 

Cheguei em nossa cabana e minha mãe me viu vermelha e ficou tão preocupada que largou a urdidura e o pente no chão e foi me ver. 

-    O que aconteceu, minha guerrerinha? - Ela falou enquanto me examinava em busca de ferimentos. Fiquei envergonhada em ter deixado ela assim tão preocupada, mas não conseguia conter a tristeza. 

-    Os meninos mãe! Eles não me querem jogando com eles! Isso é injusto porque eu sou muito boa e sou a única que desenterra o forte da neve quando migramos para cá! 

-    Quer tanto assim brincar com os meninos? - Minha mãe me perguntou depois de me consolar por um tempo. 

-    O que mais eu posso fazer? Perguntei desolada. 

-    Você pode me ajudar mais vezes com a tecelagem, tenho certeza que seu pai ficaria orgulhoso. Até Dounir me ajudou um dia desses na tecelagem. - Dounir tinha matado um gigantesco worg* nas batalhas e queria fazer uma capa para ele com a pele do bicho. Ele até me deu de presente uma faixa de peito com o que sobrou.  

-    Sempre que você me pedir eu vou lhe ajudar, mãe, mas você disse que aquele que nega seu destino se torna um fantasma em vida. E estou destinada a ser uma guerreira! - Eu disse com toda verdade que eu pudesse carregar em minha voz. Minha mãe até se emocionou, me abraçou e ficamos assim por um tempo. 

-    Hoje Delsenora esteve por aqui, é bem a terceira vez que ela pergunta por você, ela subia a montanha com as outras meninas para colher frutos dos arbustos de lá. Porque não anda com as outras meninas? - Delsenora era uma garota alta e magra, da idade de meu irmão mais velho. 

-    Meninas são bobas! - Falei cheia de mágoa. - Porque diz isso, mamãe? Como andando com meninas vou me tornar uma guerreira? - Minha mãe riu alto, o que só aumentou minha raiva e frustração, mas depois ela me acalmou. 

-    É isso que os meninos pensam de você, que você é boba por ser menina, mas você não é nenhuma boba. E quem disse que andar com meninas desviaria o teu caminho? Não são as Guerreiras da Estrela do Norte meninas? Você terá que andar com elas! E além do mais, subir montanhas é um feito impressionante de força, perseverança e resistência, algo que deve ser feito desafiando de frente a morte e sentir o júbilo de vencê-la de frente. Não é isso que guerreiros fazem?  

-    É, mas não sei escalar... - Falei confusa e admirada, já escalei árvores, pedregulhos e muros, mas nunca uma montanha, com suas paredes que parecem sumir nas nuvens, seria mesmo verdade tudo aquilo? Escalar era assim um desafio?  

-    Pronto menina, vamos fazer o seguinte. Vou falar com Delsenora amanhã para que ela lhe leve na próxima expedição de coleta, você irá esquecer dos meninos enquanto estiver com as garotas! Agora me ajude a terminar na tecelagem que depois eu e você vamos ficar arremessando lanças até não haver mais luz no céu, combinado? 

-    Combinado! - Minha mãe era uma ótima arremessadora, e eu tenho orgulho de dizer que me tornei boa nisso por conta dela.  

Terminei de ajudar minha mãe na tecelagem e como ela prometeu, arremessamos lanças no tempo que sobrou, até esqueci do dia horrível que tive. No dia seguinte minha mãe me chamou para ir até os Brunn, a família de Delsenora, mas eu queria ficar para ver se os meninos me chamavam.  

-    Guerrerinha! Venha, será bom para você! - Minha mãe insitiu, não falei nada, fiquei apenas fitando a passagem que leva para o forte com esperança de que alguém aparecesse de lá para me chamar.

-    Bom, pelo menos coma logo sua sopa, não deixe esfriar.  

Minha mãe ficou parada um tempo, mas desistiu e foi sozinha. E eu fiquei por um tempo esperando pelos meninos. Vieram, Couldourn e seus capachos, chamaram o Leif e me olharam com chacota nos olhos. Queria partir para cima do pescoço de Couldourn, mas meu pai chegava da reunião com os demais clãs com meus irmãos e corri para eles no lugar afim de humilhá-los a treinar com meus irmãos no lugar.  

-    Dounir! Beladas! Papai! - gritei para eles e para Couldourn ouvir. - Vamos treinar com espadas agora? Já consigo golpear o vento daquelas três formas por cima até fazer barulho! Agora tenho que aprender os outros golpes!  

-    Meus irmãos se entreolharam divertidos enquanto lutavam para manter sob os ombros grandes pedaços de carne que trouxeram da reunião. Meu pai me pegou no colo em um único movimento pela bunda, o que fez subir meu vestido e expor minhas pernas para os meninos verem e fiquei vermelha de vergonha.  

-    O que é isso pequenina? Não vai dar um beijo no seu pai? - E ele empurrou a barba dele na minha cara. Não era pequena, eu já era alta e forte para uma menina de 12 nightals, mas ele não se importava, me jogou para o ar umas duas vezes me embaraçando ainda mais na frente de Couldourn. Já conseguia ouvir a risada deles.  

-    E vocês meninos, que fazem por aqui? Perguntou meu pai para Couldourn. 

-    Viemos apenas chamar Leif para jogar conosco, Senhor Dermin. - Falaram com medo palpável na voz.  

-    Pois vão, apenas lembrem-se que não podem mais se demorar como costumavam! 

-    O senhor vai treinar com Serena? Podemos ficar e olhar? - Perguntou Jan, um dos capachos de Couldourn. 

-    Ah não! Temos trabalho para fazer! Vamos conservar esta carne e minha pequena irá deixar a cabana quente. Ela não tem nada que treinar, eu a protejo! - E soltou um riso trovejante. Ele estava feliz pelo resultado do butim que ficou para ele dos assassinos que pegamos no verão passado, mas as palavras dele só aumentavam minha humilhação. 

-    E lá fui eu, sem escolha e humilhada aquecer a cabana para que meu pai e meus irmãos pudessem trabalhar nos montões de carne. Meu pai notou minha tristeza e até tentou me encorajar a ajudá-lo na preparação da carne, ele sabe que eu quero ser guerreira, mas finge que não. Para ele, se eu tiver que pegar em uma arma ele falhou como pai e protetor. Meus irmãos não compartilhavam da mesma ideia e me encorajavam a isso sempre que podiam. Quando pode, Dounir foi até mim e prometeu treinar comigo mais tarde enquanto Beladas distraia meu pai. Isso me deixou feliz. Com uma desculpa de ir amolar as facas e precisar de mim para carregar as pedras, meu irmão saiu comigo para treinarmos um pouco escondidos debaixo da escarpa.  

No dia seguinte, minha mãe voltou. Ela cumpriu sua palavra e falou com Delsenora sobre mim. Ela me disse que Delsenora ficou muito feliz, e que iria me preparar para a próxima expedição. Fiquei ofendida, como a Delsenora que nunca lutou ia me preparar para qualquer coisa? E mais, se os meninos não quisessem me chamar, eu poderia ter meu irmão para treinar, isso não era melhor para mim do que subir uma montanha velha e colher frutinhas? Mas minha mãe já havia dado sua palavra, e eu não podia humilhar ela, eu nunca faria isso. Me resignei e fiquei a encarar as montanhas. Quão pequena me sentia à sombra delas! 

 * Worg: Grande criatura semelhante a um lobo, mas com o tamanho de um cavalo e com uma inteligência quase humana. Essas criaturas são conhecidas pela sua crueldade e alianças com gigantes e orcs.